Música de Boi

 
 

Para Erica Lima,

A quem devo um pouco de conhecomento da da vida dos brasileiros que imigram aos Estados Unidos a qualquer preço. Ao saber de sua morte, ocorrida faz dois anos, me recordei desse conto, escrito a partir da resposta que ela deu `a minha pergunta sobre a razão da imigração de mais um parente dela. Foi minha faxineira. E deixou neste pais uns quatro filhos .

Música de Boi

 

            Minha vida sempre foi o boi. Lá em Minas, na roça, menino ainda, meu ofício era o abate. Sozinho no mundo, a mãe recém falecida e o pai já morto fazia anos, foi esse meu primeiro e único trabalho no Brasil. Perdi a conta de quantos bois matei. Não era matadouro elétrico, como tinha aqui, já naquela época. Era na marra. Até hoje, por lá ainda é assim. Primeiro, a gente prendia o boi no curral de pau. Depois, amarrava a cabeça dele. Em seguida, as pernas. Mestria era acertar o cabo do machado no meio da cabeça do boi, no redemoinho que ele tem no pelo, acima dos olhos. Se a pancada era certeira, o bicho tremia todo e revirava os olhos. Esse era o meu serviço. Depois, a gente encontrava a veia dele e sangrava o bicho ali mesmo. Era duro. Chorei quando me disseram ser a única oportunidade para órfão feito eu. Da vez primeira, tapei os olhos. Nos últimos tempos, eu até brincava: esse aí está no ponto, carne tenra deve ter. A tudo no mundo a gente se acostuma.

            Por exemplo, me acostumei a viver neste país. No princípio foi que nem matar boi. Ou melhor, a gente é que era o boi, porque esperar trabalho arrebanhado é como estar num curral. Consertei telhado, trabalho de risco, principalmente pra brasileiro, que não conhece gelo. Um amigo caiu lá de cima. Construí casa, fiz reforma de muitas. Isso sim era difícil. Casa feita de madeira, moço, entorta com o tempo, água acumula no forro e gadunha pra qualquer lado. Bom pro imigrante, que tem mais trabalho. Cortei grama com a gringa vizinha reclamando do barulho. Até em cozinha trabalhei, lavando pratos. Algumas vezes pensava não aguentar. Saía de um trabalho e entrava noutro, sem descanso. Mas quando a gente é jovem, o corpo parece pedir serviço. E como de trabalho nunca tive medo, fui ficando.

            Quem me trouxe pra cá foi uma de minhas irmãs, muito querida. Até hoje carrego comigo uma cartinha dela. É meu talismã. Essa mana é a mais batalhadora das muitas que tenho. Foi a primeira a prestar atenção nas histórias das famílias cujos parentes começavam a vir pros estates. Quando perco o ânimo com a vida, tiro a mensagem da carteira e leio bem devagar. A letra dela, além do mais, é muito bonita. Redonda, toda por igual, de uma moça inteligente como ela só. Diz assim: “Querido irmãozinho (sou o caçula, até hoje ela me chama dessa maneira): Esse ofício de matar boi não dá futuro. Agora que nossa mãe morreu e você está sozinho no mundo, venha pra junto de nós. A viagem é pesada, mas vale a pena. As casas aqui são claras. Há muito sol, que nem no Brasil. Faz frio, mas tem sol. E há muitas janelas nas casas pra gente ver a luz. Eu tenho até carro, coisa que, aí, só rico pode ter. E muita roupa, porque é barata. E ainda me dão  roupas usadas, em muito bom estado, nas casas onde faço faxina. Venha, meu irmãozinho, tem muito trabalho aqui. Nunca mais você vai precisar de matar boi (só de pensar nisso tenho um arrepio). Assim que chegar, eu lhe ensino a dirigir. Com muita saudade, sua irmã que muito lhe quer.”

            Como prometia, essa irmã me abrigou na chegada. Mas logo busquei minha independência, como fiz ao aceitar o abate de boi. Pegava qualquer trabalho oferecido. Foi fácil pra mim porque família nova ainda não havia na minha vida. Vi muito homem na flor da saúde desistir. Tinham mulher e filho no Brasil, não dava. Muitos arranjavam mulher nova por aqui, mas não resolvia. E terminavam com filho lá, filho aqui e a cabeça comida de preocupação. Muita loucura, seu moço, muita dificuldade.

            Percorri este país de fora a fora: de leste a oeste, de sul a norte. Morei em Seatle, onde faz muito frio, mas onde a natureza é especial. Em Boston, cheio de brasileiros. Em Austin, Texas, mais quentinho. Em Miami também, onde a brasileirada se confunde com os cubanos. Sempre nas cidades, porque nelas há mais trabalho. Com tanta andança, demorei muito a encontrar a minha cara metade. Fiz muita besteira, me meti com umas gringas complicadas, talvez porque naquela época não dominava a língua delas. Não sou feio, como a senhor vê, até hoje. No Brasil e aqui, nunca me foi difícil conseguir mulher. Mas aqui e lá, mulher não é bicho fácil de dominar. E como amarrar cabeça e perna só pude fazer com boi, às vezes me metia em encrenca. Sou carinhoso com as moças, faço agrado, por isso mesmo mal me interpretam. Algumas me deixaram, de outras me cansei. Encontrei a mãe dos meus filhos num show aqui em Nashville. Tinha vindo visitar uns parentes: não a deixei voltar pro Brasil.

            Meu único problema foi a tristeza. É verdade o que diz minha irmã na cartinha dela. Aqui há conforto, há claridade, há carros bonitos. Não me queixo. A casa onde vivo  um dia será minha, aqui estou criando meus filhos, que, por muito esforço dessa doce esposa que tenho, falam um pouquinho de português. Mas a vida só de trabalho daqui me custou quase a saúde. Não a do corpo que, como pode ver, vai muito bem. Mas a mente, senhor, a cabeça da gente, sofre muito. Já passado algum tempo vivendo aqui, me bateu uma nostalgia muito grande. Não era, felizmente, como a de alguns que conheci,  terminados no hospital, pra não mencionar estados piores. A minha foi uma tristeza que nem parecia tristeza. Era assim como um cisco que entra no olho da gente, pequeno, tão pequenino que nem parece cisco. Mas fica ali, presente, e a gente não sabe como tirá-lo do olho. Esse cisquinho não me levou a vontade de trabalhar, mas foi tornando o trabalho sem interesse. Aqui treinam bem a gente, aqui se aprende a fazer tudo bem direitinho, sem pensar e sem perguntar porque faz. Assim que continuei conseguindo trabalho e sempre ganhando elogio. Mas quando chegava em casa era aquele vazio por dentro. Comecei a lembrar de Minas, comecei a sonhar com a roça. Pra lá não podia voltar: meus irmãos quase todos aqui, empurrando a vida. Amigos não deixara, porque muito jovem tinha saído.

            Comecei a lembrar de boi e dei pra aboiar. Meu pai era vaqueiro. Rememoro viagens com ele, bem pirralho ainda eu era, transportando boi pelo sertão afora. Mas não recordo de ter aboiado antes na vida. Coisa que se escuta em menino fica encarnada, descobri. Aboiava quase em silêncio, pra não perturbar os vizinhos. Fechava os olhos e começava. O aboio trazia a visão dos morros agrestes de Minas, verdes que aqui não há, tudo sempre tão limpo e tão tratado. Pelo menos assim percebi, nas poucas vezes em que tive oportunidade de viajar pelos matos deste mundão de Estados Unidos.

            Em seguida, moço, veio a música completa. Sussurrava baixinho as melodias gravadas na mente, baladas e modas de viola. Naquela época, não tinha essa facilidade de comprar CD brasileiro em qualquer lugar. Ou de escutar música no computador, como faz meu filho. Era a memória, o escuro fundo da memória, o lugar de morada da música da minha cantoria. Trabalhava duro igual, mas só pensava em voltar pra casa e tirar minhas toadas. Foi assim, senhor, que pude suportar a vida neste país por todos esses anos.

            - Billy Boy, faltam 5 minutos!

            Ele era, realmente, um homem bonito. Não tinha ainda quarenta anos e a pouca maquiagem ressaltava os cabelos escuros, a pele e os olhos claros. A roupa de caubói, em couro branco e tachas prateadas, recordava Roy Rogers em seus dias de glória. Empunhou a guitarra e sorriu pra mim:

            - Hoje, se tiver brasileiro na platéia, canto uma música do Luiz Gonzaga pro senhor. Descobri a cantoria dele aqui, cheguei até a pensar em adotar sua vestimenta. Meu agente, porém – tive sorte, cedo me descobriram - disse que melhor me inventasse uma roupa mais americana.  Mas ainda hoje gosto mais das canções do Luiz Gonzaga que da música sertaneja moderna, sempre pedida pelos conterrâneos em visita, vindos do interior de São Paulo, do  Paraná, do Mato Grosso.

            Quis ser Billy Boi, mas me disseram que em inglês não ia funcionar. Aqui, boi, palavra que eles também conhecem e usam, se refere à mulher macha, sapatão. Me sugeriram permanecer com a palavra que já havia no inglês, embora não significasse a mesma coisa. Eu ia ser Billy Boy: soava bem, era curto e fácil de memorizar. Então, eu disse, que seja Billy Boy. Cheguei neste país um boy, seria uma maneira de perpetuar aquela idade, quando os bois estavam ainda no meu sangue. Mas só aqui fui capaz de dar-lhes vida, como se tê-los matado por tanto tempo tivesse produzido o estrume que me fez crescer, fazendo também nascer em mim o Billy Boy, astro da country music.

            O público entrou em delírio quando Billy Boy entoou as primeiras notas. A letra da música contava desgraças da vida do caminhoneiro. Sorriam,  dançavam, aplaudiam. O show ia pelo meio, quando, ao final de uma dolente canção de amor, alguém gritou em bom português:

            - E aí, Billy Boy, é verdade que você é brasileiro?

            - Of course, companheiro! Você conhece essa?

            Os fãs, aparentemente conscientes da origem de seu ídolo, receberam com aplausos a primeira frase:

            - “Minha vida é andar por esse país...”

            Um pequeno grupo de brasileiros acompanhava a letra em português, eu incluído entre eles.

                                                                                                          Lidia V. Santos

Vertigem

Faz quase um ano que não entro em contato com meus leitores através deste Blog. Minha volta `a New York sob pressão de problemas de saúde na família, felizmente bem resolvidos, tomaram - e ainda tomam - muito do meu tempo. Hesitei se o reabriria na linha usual: falar de New York quando aqui estou, como é o caso agora, ou do Rio, que sempre me faz falta se fora dele ando. Então me lembrei de um conto, ainda inédito em impressão: foi publicado, apenas, no blog do meu amigo Oswaldo Martins, antes ainda de ele ter-se transformado em editor dos meu livro “Diários da Patinete. Sem um pé em Nova Iorque”, em 2015.

A vertigem que lhe dá título, por um lado serve como metáfora da sensação que tenho ao receber as notícias da barbárie instalada no Brasil desde que o atual governo assumiu o poder. Sua leitura me deixa a sensação de debruçar-me no topo de um abismo de maldade sem fim, afetando, mais do que nunca, a gente pobre, as mulheres de todas as classes e, agora, até as crianças. Essa triste realidade, combinada`a atmosfera global de uma pandemia, compõe um cenário cada vez mais sombrio.

Lembrei-ms deste meu conto ao ler, inda agora, uma notícia que compara a morte recente de um menino, ocorrida no seio da sua família, com a de uma da menina, no mesmo ambiente, faz alguns anos. Morte que aparece no conto que aqui reproduzo.

Tinha, ainda, em mente, o feminicídio. Tentando mostrar a recorrência desse crime, agora estendido `as crianças. E eis que veio a morte de meninos. Faz poucos anos, a do filho da empregada doméstica da família do prefeito de uma cidade pernambucana, no Recife. Agora, prova-se a morte de outro, assasinado por um legislador eleito pelo povo do Rio de Janeiro, seu próprio padrasto, crime assistido pela própria mãe do menino morto.

Se há algo de positivo que essa pandemia poderia provocar, seria uma discussão nacional e / ou planetária sobre como retomar o humanismo. Fóruns de discussão sobre o cuidado e a proteção das nossas crianças, nosso futuro, serão muito bem-vindos. Mais não digo. Deixo que o resto seja dito com esta curta narrativa, onde narro a história de três gerações de mulheres cariocas. Com uma pontinha de humor, porque só ele pode dividir e tragédia em degraus de alívio reflexivo.

Segue o conto:

VERTIGEM

            Estávamos as três com o olho grudado na televisão, quando a vovó falou:

            - Meu Deus, como a Aída Curi está pequeninha...

            A narrativa do crime era muito absorvente e ninguém prestou atenção.

            - Vai ver que quando caiu lá embaixo, além de virar santa ficou menina outra vez.

            - De quem você está falando, vovó?

            - Da menina aí da notícia... É a Aída Curi!

            Mamãe resolveu responder:

            - Não mamãe, o nome dela é outro.

            - Ela foi jogada do alto de um edifício, não foi?

            - Foi, mas de outro edifício e em outra cidade.

            - Copacabana naquela época era fina. A gente andava de tailleur completo e salto alto, não era essa falta de gosto que agora se vê pelas ruas. Em meio à elegância, aquele crime. Você se lembra, Arlete?

            - Sim, mamãe, lembro-me muito bem.

            - Da Aída Curi? Mas graças a Deus você não a conhecia. Eu não deixava você sair sozinha, tudo era mais decente.

            - Lembro-me muito bem, porque você e papai fizeram da minha vida um inferno depois desse crime.

            - Pra seu bem, minha filha, pra seu bem. Menina de família não acaba como a Aída Curi.

            - Isso era no seu tempo, mamãe.

            - Ela era uma moça muito bonita, de uma beleza pura.  Por isso mesmo se perdeu. E o Ronaldo Guilherme, que a atraiu lá pra cima, e o Cássio Murilo, que a matou! Que pedaços de homem! Olha aí o Ronaldo agora! Pois se estão contando o crime. Olhem bem: não é bonito?  Verdade que um pouco caído, sem os óculos rayban, falando errado... Ainda assim, um pão!

            - Esse aí tem nome de rei e é o pai da menina que morreu...

            - Não foi o pai da Aída Curi que a jogou pela janela. Um pai não faz uma coisa dessas. Isso é absurdo. Se é pai, tem que proteger a filha. Quem matou a Aída Curi foi o namorado dela, ou o homem que ela pensava que era namorado dela.

            - Isso era no seu tempo, mamãe! E nem o Ronaldo, nem o Cássio Murilo eram namorados da Aída Curi.

            - Tinha um outro envolvido também. Um outro cafajeste, como a gente chamava os meninos desajustados naquele tempo. Imagina, currada por dois homens, que horror. Isso é que dá aceitar convites sem pensar, se deixar seduzir pela beleza, pelas belas palavras... Olha só a carinha da menina. É a Aída Curi quando era menina, tenho certeza.

            - Hora de ir pra cama! Você está confundindo tudo, mamãe!

            - Se eu for pra cama agora, vou sonhar com o Ronaldo Guilherme.

            - Pois deveria mesmo ter um pesadelo com o Ronaldo. E com o Cássio Murilo também. Foram eles os responsáveis por você e papai terem me obrigado a esquecer minha turma da praia, vigiando-me como uma retardada. Terminei casada com o estafermo do Gregório.

            - Puxa, mãe, como você pode falar assim do papai, além do mais, já morto?

            - Você não se casou com ele, Patrícia, nem chegou a conviver com ele como seus irmãos, muito mais velhos que você, tiveram que fazer a contragosto.

            - Eu também acho que você não pode reclamar, Arlete. O Gregório era um bom partido. Graças a ele, você vive nesse apartamento de frente pro mar. Em Copacabana.

            - Decadente, mamãe. O apartamento e o bairro.

            - O problema é que Gregório morreu muito cedo. Trabalhava muito. Muita preocupação financeira...

            - Falcatruas, mamãe, sempre metido em falcatruas. Só me deixou dívidas.

            Vovó esqueceu-se da televisão e perdeu os olhos em algum ponto distante do oceano Atlântico, muito além da janela do apartamento.

            - Eu nunca confessei a ninguém, mas eu me apaixonei pelo Ronaldo Guilherme. O Cássio Murilo era um fedelho, não oferecia atrativo para a mulher madura que eu era na época. Já o Ronaldo lembrava o Marlon Brando. Eu amei o Ronaldo Guilherme...

            - Como, mamãe?

            - Era uma paixão medonha. Eu o imaginava me dizendo obscenidades no ouvido, me rasgando a roupa... Assim descreveram o crime: rasgaram a roupa da moça e ela lutou. Dizem que se jogou para se salvar deles, tendo morrido virgem. Boba. Eu mais queria era fazer sexo com o Ronaldo Guilherme, até com o Cássio Murilo...

            - Mamãe, você está ficando inconveniente. Hora de ir pra cama!

            - E eu vou perder o Ronaldo falando na televisão? Quem é a namorada dele?

            - Não é namorada. É a mulher dele.

            - Ele casou? Que pena! Não há mais esperança de que eu me case com o Ronaldo Guilherme? Na verdade não parece o Ronaldo, sempre bem vestido, bem articulado...

            - Mamãe, eu já disse à senhora que esse é não é o Ronaldo.

            - E essa mulher, quem é?

            - É a mulher do rapaz. A polícia diz que ela estrangulou a enteada e o pai da menina a jogou pela janela.

            - Meu Deus! Ronaldo não faria uma coisa dessas.

            - Como não?

            - Ora, Arlete! Tem muita diferença entre jogar pela janela uma desconhecida, que além disso concordou em subir com ele para o apartamento, e assassinar a própria filha.

            - E qual é a diferença?

            - A dos tempos, minha filha. Antes, a gente protegia as filhas, vigiava a companhia delas, punha atenção à hora em que chegavam em casa, agora é esse caos, essa falta de hábitos..

            - Pera aí, vovó, não vira sua metralhadora giratória contra mim, não!, tive que me defender, já que conhecia onde esse comentário terminava.

            - Mas se a menina estava na casa da família dela, mamãe!

             - Que família? Se era enteada da tal que dizem que a esganou, onde estava a mãe dela? Assim que esse pão aí, além de assassino, é bígamo?

            - Chega, mamãe. Dessa vez você vai pra cama sem apelação.

            Apesar da má vontade, vovó concordou. Já cansada de tanto alarde, desliguei a televisão. Depois de acomodar a vovó, mamãe voltou à sala. Acendeu um cigarro (por que não pára de fumar?) e sentou-se a meu lado. As duas contemplávamos o navio iluminado que cortava o oceano.

            - Mãe, a quem se referia a vovó? Quem era Aída Curi?

            - A vítima do crime mais comentado dos anos 50. Moça pobre, estudante de datilografia. Acho que não era de Copacabana. Se era, não freqüentava o círculo dos seus assassinos.

            - Quem eram eles?

            - Meninos de famílias importantes. Passavam seu tempo entre a praia e as motocicletas da época de James Dean, do Marlon Brando jovem..

            - Marlon Brando sei quem era, mas James Dean...

            - Um ídolo do cinema americano. Os rapazes o imitavam, com seu casaco de couro, seus óculos rayban...

            - Você conhecia essa turma, mamãe?

            - Não exatamente. Eu era quase uma menina. Davam medo, mas também fascinavam. Os homens, especialmente. No final das contas, se comportavam todos igualzinho a eles.

            A fumaça do cigarro escondia os olhos úmidos de mamãe.

            - O que foi, mãe? Más lembranças?

            - Talvez, filha.

            - O crime foi aqui em Copacabana?

            - Sim, aqui pertinho, na Atlântica mesmo. Acho que o prédio ainda existe. Jogaram a moça do 12º. andar.

            - Isso está parecendo o caso daquela menina lá da Fonte da Saudade, uma tal de Mônica. Tinha uns quinze anos. Também foi jogada de um andar alto, por dois rapazes que a conheceram numa discoteca. Eu era garota ainda, mas lembro do escândalo.

            - É um crime da sua geração. Não ficou registrado na minha memória.

            - Acode, gente! O Ronaldo Guilherme e o Cássio Murilo querem me estuprar!

            Mamãe de um salto alcançou o quarto e conseguiu segurar a roupa da vovó. Seu corpo delgado obedeceu e recuou.  Eu a abracei pela cintura, protegendo-a contra a janela, o que me fez projetar meu próprio corpo quase metade para fora, mas as mãos de mamãe se fecharam nas minhas costas, puxando à mim e à vovó para trás. Ficamos as três abraçadas, trêmulas de medo, a contemplar as ondas de pedra, brancas e negras, no calçadão lá embaixo, enquanto na Avenida Atlântica, como nos cartões postais, os carros deixavam, na sua passagem, um rastro de luz.

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Dentro de Casa: Peru, Brasil e Beleza Feminina

Ela estava empoeirada. E eu, culpada pelo seu abandono. Logo ela, que cumpre a função de dar boas vindas aos nossos visitantes, pensei. De imediato, interrompi todo o plano do dia. Ia cuidar da sua higiene. Tirei-lhe do corpo a fina camada de pó com muito cuidado, Antes, saiu de sua cabeça o chapéu que, acho, ela usava desde o carnaval do ano anterior.

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Da cinemateca do MAM `a Truffaut no Estação: O Cinema na Vida da Minha Geração

A grama do Aterro voltou a mexer comigo no primeiro sábado de 2020. Na noite de 7 de janeiro, ao assistir o (excelente) espetáculo François Truffaut – O Cinema é a Minha Vida, no Cine Estação Botafogo, minha memória trouxe de volta tudo o que vivi e aprendi na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, o MAM do Rio de Janeiro.

A peça foi idealizada por Patricia Niedermeier, (que encarnou com perfeição, sendo atriz principal, o diretor francês que dá título a peça), Rodrigo Fonseca e Cavi Borges, para comemorar os 60 anos do primeiro filme de Truffaut, “Os Incompreendidos” (1959). O cenário aproveitou a tela de cinema da sala 4 do Estação. Nela se exibiam partes de filmes de Truffaut, entremeadas `as falas de Truffaut/Patricia. Os três compõem a Cia. Cavideo. Os dois rapazes foram os diretores, tendo Rodrigo Fonseca (`a esquerda, na foto abaixo), curador de programação do Estação Net Botafogo, também aparecido como ator.

François Truffaut: O Cinema é a Minha Vida

François Truffaut: O Cinema é a Minha Vida

De cara, lembrei-me de que sem a Cinemateca do MAM eu talvez não tivesse feito de François Truffaut um dos meus diretores preferidos. Porque a Cinemateca nos proporcionava um verdadeiro curso de história do cinema, introduzindo seus frequentadores não só nos primórdios da “sétima arte” – como a coleção bastante completa do filmes do russo Sergei Eisenstein, por exemplo – mas também na consecutiva produção cinematográfica de igual qualidade. Na grama do Aterro se localizava o fórum de debates sobre os filmes que víamos, ou nos preparávamos pra ver na cinemateca. Do cinema russo ao neo-realismo italiano. E, claro, da nouvelle vague francesa, da qual Truffaut foi um dos iniciadores. Ver tudo isso hoje continuado nos cinemas do grupo Estação foi super gratificante.

Nossa geração se acostumou a dividir o elevador de acesso `a sala de exibição / auditório da cinemateca do MAM com Glauber Rocha. Era um dos nossos, mesmo que sua resposta ao nosso “Oi, Glauber!” fosse, na maioria dos casos, um meio sorriso, ou um olhar amigo e indecifrável.

Outra figura emblemática era o Cosme (Alves Neto), curador da Cinemateca por trinta anos. Mas pra nós, o grupo de cine-clubistas e / ou amantes do cinema que ele ajudava a formar com o acervo que ia fazendo crescer, ele era apenas “o Cosme”, aquele que nos emprestava os rolos dos filmes pra gente passar nos cineclubes. Nas suas próprias palavras, citadas no filme Tudo por Amor ao Cinema (Aurélio Michiles, 2014), feito em sua homenagem, “uma cinemateca não deve ser um museu; ao contrário, ela é apenas um lugar de armazenar um acervo que tem que circular, chegar a mais gente”. De posse dos rolos da Cinemateca do MAM nos nossos cineclubes, na maioria dos casos situados em bairros distantes da sua morada, “conscientizávamos” a população sobre os males da ditadura militar brasileira.  

Participei de vários cineclubes. Como espectadora, como colaboradora e até como professora. Com os alunos do colégio estadual Brigadeiro Schort, no bairro da Taquara, cidade do Rio de Janeiro, reativei o cineclube C.A.S.A. (Casa dos Amigos da Sétima Arte) que, inaugurado durante a gestão da professora Henriette Amado como diretora, tinha sido fechado pela ditadura. Como o anterior, o novo C.A.S.A. ofereceu uma atividade extracurricular (e cultural) aos alunos. Para tanto, tive o incentivo e contei com o apoio da saudosa colega Lygia Malaguti, uma das professoras da equipe anterior, que preferiu manter-se no colégio depois da transferência de Henriette Amado para o colégio André Maurois, no Leblon. Lygia mantinha funcionando a excelente biblioteca do Brigadeiro Schort. De onde saiu, poucos anos mais tarde de sua experiência no C.A.S.A., o talentoso e produtivo roteirista cinematográfico Paulo Halm, nosso aluno secundarista, agora formado pelo curso de Cinema da UFF, que tinha como diretor Nelson Pereira dos Santos, outro ídolo com quem cruzávamos a caminho da Cinemateca do MAM.

No antigo município de Cabo Frio, onde vivi de 1980 a 1985, os rolos de filmes emprestados pelo Cosme/Cinemateca do MAM, pela Federação dos Cineclubes / RJ, pelo Instituto Goethe e por algumas outras potentes instituições culturais do Rio, foram por mim exibidos com o auxilio da saudosa amiga e animadora cultural Olímpia Leite e outros cabofrienses valorosos. Chegaram `as ruas de bairros de pescadores e ajudaram no movimento de associações de bairro, importado da capital do Estado, onde este tipo de movimento social estava no seu auge. Também em Arraial do Cabo, sob a aba da saudosa Amena Mayall, filósofa e artista de muitos talentos e atividades, dentre as quais, a de pesquisadora e defensora do meio-ambiente e da cultura da região do Lagos, ajudei a divulgar a cultura cinematográfica. Arraial do Cabo, filme com que Paulo César Sarraceni, inaugurou o Cinema Novo em 1959, era o carro-chefe do sucesso das sessões de cinema entre os espectadores do Centro Cultural Manoel Camargo, que Amena dirigia naquela cidade. A cada vez (das muitas) que era exibido, os espectadores deliravam. Reconheciam nas imagens a si mesmos, seus amigos e pessoas da família. Alguns, meninos na época das filmagens e então adultos; outros, já mortos.

No universo de hoje, a revolução da imagem suplantou a da música, descrita pelo educador musical Murray  R. Schaffer, no final dos anos 80, pela sua total onipresença e por sua capacidade de “sair de qualquer lugar” e ser por todos reproduzida.

Com isso, fica difícil imaginar a novidade que, com muito orgulho, me contou a diretora de cinema (de quem, infelizmente, ainda não consegui recuperar o nome), que nos anos 80 do século passado acompanhou com sua câmera a luta dos trabalhadores da zona rural de Cabo Frio contra Jamil Miziara, o proprietário da empresa em que se transformara a fazenda Campos Novos, construída pelos jesuítas. Por isso mesmo também parte do Patrimônio Nacional Brasileiro (hoje tombada). `Aquela altura, o sujeito tocava a fazenda usando jagunços e grileiros para evitar sua desapropriação para fins de reforma agrária pelo INCRA.

Nunca esqueci o depoimento da cineasta ao final da sessão que organizamos para exibir a parte do copião do filme que mostrava essa luta na região; “Ao ver, pela primeira vez, essas imagens de Miziara, com quem fazia anos lutavam juridicamente, a reação dos camponeses era impactante, sempre”, disse ela. E continuou: “De minha parte, ver essa reação foi a prova cabal da importância do cinema no trabalho de conscientização política”.

Infelizmente, o cinema não foi capaz de impedir o assassinato de Sabastião Lan, líder dos camponeses da Fazenda Campos Novos, no ano de 1988, em plena rodovia Amaral Peixoto, a caminho de uma reunião a ser realizada no Ministério da Reforma Agrária, em Brasília, onde defenderia, com documentos, a posse da terra pelos camponeses que nela trabalhavam. Crime cometido no mesmo ano em que todo o Brasil acompanhava os trabalhos da Assembléia Constituinte que redigiu a Constituição pós-ditadura, desde então em vigor e hoje ameaçada. Ver a história completa da fazenda e do conflito de Campos Novos no documentário (de 20 minutos) Lan (1988), de Milton Alencar: https://www.youtube.com/watch?v=yBcMmc7u5PE

Sabia que o movimento cineclubista, além de ter gerado profissionais do cinema brasileiro, tinha evoluído, com o término da ditadura militar, para a fundação de cinemas comerciais com ênfase no “cinema de arte”. Foi o caso do Estação Botafogo, que leva esse nome devido a inaugurar-se junto com a primeira linha de metrô da cidade, cuja única estação do bairro ficava, como até hoje, quase ao lado do cinema. Ele foi o primeiro a incluir antigos cineclubistas na sua direção, seguido pelos atuais Estação Net Rio e Espaço Itaú de cinema, que fizeram de Botafogo o bairro mais frequentado pelos cinéfilos do Rio de Janeiro.

Mas a surpresa mais feliz dessa noite foi perceber a continuidade do “espírito cineclubista” na exibição daquela peça-filme na menor sala, logo, a mais “íntima”, do cine Estação Net Botafogo. Montar nela uma peça de teatro onde o cinema é o tema central, homenageando um cineasta que, por sua vez, também chegou `a sua arte através dos cineclubes francesas que ajudou a fundar; por ter como ator um dos curadores do cinema onde a peça se apresentava; por estimular um debate sobre ela após sua apresentação: tudo isso demonstra que o cineclubismo não está morto. Sua continuidade pode ser atestada, ainda, na programação do evento  "OCUPAÇÃO SALA 4" no mesmo cinema , de 4 a 31 de março próximo, onde se incluem “quatro cineclubes”.

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Nesses tempos de novas – e mais medíocres – perseguições ao trabalhadores da cultura, mais do que nunca a experiência cineclubista é um manancial de sugestões de como resistir `as tentativas de destruição da cultura construída pelo trabalhador cultural ao longo dos anos, com muita luta e muito trabalho, quase sempre voluntário. Como disse no post anterior, perpetuemos essa continuidade.

Resistir `as tentativas cotidianas de destruição é a nossa tarefa. A mais urgente.

Nota: A cia Cavideo continuará o resgate da Nouvelle Vague com a peça Marguertte Duras, incluída no evento Ocupação da Sala 4, citado acima. Para a história dos cineclubes, recomendo o livro escrito por uma historiadora e cineclubista: Matela, Rose Clair. Cineclubismo. Memórias dos Anos de Chumbo. Rio de Janeiro, Ed. Multifoco, 2008. 204 p. Isbn: 9788560620296

"Na grama do Aterro, sob o sol"

“Bem que eu me lembro, a gente sentado ali:

na grama do aterro, sob o sol

Observando hipócritas disfarçados rondando ao redor.

Amigos presos, amigos sumindo assim,

Pra nunca mais…

Mas recordações, retratos do mal em si,

Melhor é deixar pra trás...”

Gilberto Gil

(Letra da versão da música No woman, no cry, de Bob Marley)

Uma amiga que se auto-exilou na época a que se referem os versos de Gilberto Gil que cito acima, me contou que, na volta ao Rio, se alegrava ao encontrar um bar que costumava frequentar, algum cinema onde gostava de ir e até de passar por gente que conhecia de vista. “Era um alívio”, ela me disse.

Foi assim com o Festival Novas Frequências, realizado em dezembro de 2019 no Museu de Arte Moderna / MAM do Rio de Janeiro. Ver https://www.facebook.com/novasfrequencias Minha volta anual `a cidade, no final de outubro, tinha muito a ver com a da minha amiga, 50 anos atrás. Feito ela, cheguei carregada de expectativas negativas em relação ao que encontraria aqui, especialmente na área da cultura. Por isso, foi uma alegria ver os jardins do MAM povoados de jovens durante aquele Festival. Faziam algo muito parecido com o que minha geração realizou durante os Domingos da Criação no ano de 1971. Eventos coletivos, tais domingos tinham como objetivo praticar uma arte “social”, de fundamento utópico, trazendo o museu para o belo espaço aberto do seu entorno. Eram liderados por artistas que ofereciam cursos e oficinas de arte no departamento educativo do MAM, sob a batuta do seu diretor Frederico Morais. Ver https://www.itaucultural.org.br/uma-colecao-poetica-domingos-da-criacao-e-vozes-do-experimental-em-arte-e-educacao

Foram performances cênicas coletivas realizadas com materiais e técnicas das artes visuais (na época chamadas de happenings, ou “acontecimentos”) realizadas no último domingo de cada mês, durante seis meses. Em cada uma, um material de trabalho diferente era oferecido ao público. Assim, houve o domingo do tecido, em janeiro, o do papel; e ainda os da terra, dos fios, do som e do corpo  Seus integrantes eram, ou interagiam com, os frequentadores dos jardins do Aterro, retratados na letra de Gil.

Fotos dos Domingos da Criação: do tecido, na foto 1, em janeiro de 1971; do papel, na foto3, alternam-se com fotos do público presente no vão central do MAM /RJ, no Festival Novas Frequências (1-8 dez. 2019).

Depois dessa primeira boa surpresa, decidi visitar o Museu, programa que antecedia, ou complementava, minhas idas ao Aterro do Flamengo naqueles anos distantes. Constatei que o vigor da arte erudita continua de pé. Agora, permeado por outros saberes, vindos das franjas da arte quase sempre restrita `as universidades e museus. Foi bonito ver a exposição (de alta qualidade) das comunidades do Rio de Janeiro lado a lado com a bela retrospectiva da obra de Vergara, um dos nossos grandes artistas visuais eruditos que, inclusive, foi um dos “animadores” dos Domingos da Criação de 1971. Já na atual mostra do acervo do MAM, lá exposta, a ênfase está posta nas fotos que documentam a transformação da cidade a partir da transferência da capital, do Rio para o centro-oeste do país. As fotos do nascedouro de Brasília, incluídas nessa seleção do acervo, é, além de uma comparação contrastiva entre as duas capitais – uma que perde esse status e outra que nasce para adquiri-lo -, é uma excelente informação visual sobre a História das duas cidades e do Brasil.

Ao sair do interior do perfeito edifício de Affonso Reidy que abriga o museu, mergulhei de cabeça nas Novas Frequências. Era o primeiro dia do Festival e do mês de dezembro e o vão delimitado pelas inclinadas colunas de concreto estava repleto de grupos, produzindo diferentes práticas delas. Apresentações de todos os tipos de experimentações sonoras se misturavam. Computadores conversavam com enormes engrenagens industriais, tonéis de lata e instrumentos de percussão tradicionais. Tudo produzindo um som criativo e inesperado, cuja performance, musical, cênica e plástica, as fotos registram.

(André Damião e Francisco Lemos (BR) sobem a rampa do restaurante do MAM no curso de sua obra Guerra Não Linear (foto1); Tim Shaw (UK), mostra sua criação de múltiplos suportes e linguagens em outro ângulo do mesmo espaço do MAM.

Mas meu objetivo neste dia era o concerto da compositora argentina Beatriz Ferreyra https://beatrizferreyra.odavia.com uma das precursoras da música concreta (cuja versão em poesia conheço, entendo e gosto bastante) e eletrônica.

Mais uma vez, não me decepcionei. O trabalho mostrado por essa artista, merecidamente aplaudido, segundo o material do Festival, é “espacializado em um sistema multicanal com oito grandes alto-falantes. Compõe-se de quatro peças, que giram em torno da astrofísica e dos mistérios da existência, de músicas populares argentinas e brasileiras, de sonhos nos trópicos e, finalmente do “bardo Thodol”, o livro tibetano dos mortos”. O público, gente de todas as idades, etnias e gêneros, que parecia não ser, como eu,  inteiramente capaz de decodificar sua descrição, apreciou e respondeu positivamente aos acordes inusitados que a compositora, de pé diante dele, extraía dos seus computadores. A expressão dos que desciam a rampa da varanda do antigo restaurante do museu, onde o concerto se realizou, trazia a tranquilidade e a paz que resultam da exposição a uma bela experiência estética.

(Beatriz Ferreira mostrando o seu trabalho a seu público, por ela aconselhado a buscar a melhor maneira de disfrutá-lo: caminhando em direção aos alto-falantes (foto 2), ou encontrando uma posição confortável para a recepção (foto3).

Uma semana depois, veio a verdadeira grande surpresa: o espetáculo de encerramento, The Ceremony, no dia 08 de dezembro.  Minha emoção atingiu seu ápice ao ver os artistas performáticos, os percussionistas e os músicos de instrumentos eletrônicos expressar-se atravessando o jardim de pedras roliças em frente ao vão central do MAM, espaço onde se desenrolaram os eventos daqueles distantes Domingos da Criação.

No entanto, ao contrário dos happenings de 1971, estavam ali reunidos artistas braslleiros e estrangeiros, sendo os protagonistas de clara ascendência africana. A performance coletiva The Ceremony foi idealizada pelo Novas Frequências CTM (Berlin) e Maintenant (Rennes), festivais que fazem parte da rede internacional ICAS / International Cities of Advanced Sound (Cidades Internacionais de Som Avançado), com apoio do Goethe Institut, do Instituto Francês e da Caritas.

Responsáveis pela concepção do espetáculo, os artistas Zorka Wollny (polonesa radicada em Berlim) NDOS (francês) e Loic Koutana (também francês, mas há quatro anos radicado em São Paulo, onde, além de trabalhar como modelo, faz parte da banda Teto Preto), se misturavam a outros artistas participantes do Festival e de seu público, convidado a integrar-se na apresentação, A performance elaborou temas como imigração e identidade, através da percussão - eletrônica e tradicional -, da expressão corporal e das intervenções verbais de alguns dos artistas. Poucas vezes vi encenado um retrato tão fiel da humanidade contemporânea. Os aplausos veementes confirmaram o seu acerto.

(Os artistas Zorka Wollny, NDOS, e Loic Koutana, (foto 1), o grupo de artistas, a maioria participantes em outras obras do Festival que participaram da performance (foto 2) e cenas do público integrado na obra performático-visual-musical The Ceremony, nas demais fotos.)

Saí do Aterro com o verso “De tudo fica um pouco”, de Carlos Drummond de Andrade, na cabeça. Dos pioneiros Domingos da Criação ficou mais que pouco. A abertura da arte erudita `a prática dela pelo público mostra, meio século depois, os seus frutos. O diálogo dos nossos artistas com seus companheiros de outros países, que a cepa mais privilegiada (artística e financeiramente) sempre conheceu, me parece, a esta altura, muito mais inclusivo.

Sobretudo, saí com o sentimento de, como brasileira, estar integrada numa cultura viva, e, portanto, que não necessita de nenhum “renascimento”. Seu motor central é a continuidade, estabelecida em poucas, mas robustas instituições, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Esse sentimento me encheu de esperança e de vontade de agir para que não a destruam.

A força simbólica do MAM esteve ainda presente fora do evento musical. Terminado o concerto de Beatriz Ferreyra, depois de dar-lhe parabéns e conversar um pouco com ela sobre sua música, dirigi-me ao parapeito do terraço. De lá, avistei um ensaio da Orquestra Voadora, cuja filiação aos Domingos de 1971, está registrada num pequeno filme de 2010, Um Domingo no MAM https://vimeo.com/25518852

Do mesmo terraço, avistei ainda, poucos metros ao lado da Voadora, os ensaios do coletivo feminino que reproduziu, em manifestações políticas recentes, a coreografia criada pelas mulheres chilenas em luta contra seus governantes.

No Brasil, a luta dos artistas contra o nosso atual governo tem que ser por impedir a quebra dessa persistente continuidade do trabalho cultural, apesar de todas a adversidades a que ele sempre esteve submetido. Lembremos Hélio Oiticica outro artista que, atuante nos anos 60 e 70, cruzou as fronteiras que dividem a arte erudita do resto do país, estendendo a sua desigualdade social aos artistas: “Da adversidade vivemos!”, foi o lema com que Oiticica, em abril de 1967, terminou o manifesto de apresentação da exposição Nova Objetividade Brasileira, realizada nesse mesmo edifício do MAM / Rio de Janeiro. .Falava em nome dos seus 40 artistas, alguns oriundos do concretismo a que a argentina Beatriz Ferreyra, como vimos, também fez parte; e de neo-concretistas, Ambos grupos iniciando, com aquela exposição, um novo movimento artístico.

Assegurar tal continuidade começa por lutar pela preservação de instituições como o MAM, o MAR, a Fundação Casa de Rui Barbosa e muitas outras. Todas fruto de uma luta incansável da nata de nossos artistas e intelectuais para compartilhar seu conhecimento e sua arte de formação erudita com a população que a eles não tem acesso. Assegurar que esse esforço continue é a tarefa de hoje. A mais urgente.

“Influência do Jazz” e do rocK: revolução, mulher e literatura através do cinema

Já me despedindo de New York por um tempo, faço uma retrospectiva do mais interessante que vi por aqui nos dois últimos meses, quando, ocupada, andei sumida deste espaço.

Por razões mais abaixo declaradas, me decidi pelo cinema. Durante os seis meses em que morei em Paris, entre 1999 e 2000, essa cidade me pareceu a mais cinematográfica de todas. Vi filmes raros, como Casque D’Or (1952), com uma Simone Signoret jovenzinha e linda. Nunca esqueci esse filme, cujo diretor, Jacques Becker, faz das ruínas da cidade no pós-Guerra o cenário de uma famosa história, acontecida em 1902, cujos personagens são uma prostituta e seus dois amantes, líderes de uma “facção” de criminosos, os “Apaches”, ecoando, no nome escolhido por eles, o faroeste americano. O bando, de fato, atemorizou a Paris do princípio do século XX. A cena final, considerada antológica por François Truffault e críticos de cinema, é um libelo contra as execuções por guilhotina, ainda usada na Belle Époque, o tempo da história narrada.

Vinda do meu endereço americano no estado de Connecticut, desconhecia, naquela virada de século, o que New York oferece aos amantes do cinema. Além de salas dedicadas aos filmes estrangeiros, como o Internacional Film Center / IFC, ou a filmes antigos, como o Anthology Film Archives, a cidade conta ainda com instituições estrangeiras que exibem os filmes dos seus países. Um dos meus preferidos é o do Consulate General of the Czeck Republic / Consulado da República Tcheca. No verão, a cobertura do seu belo edifício, o Bohemian National Hall, se transforma numa sala de cinema ao ar livre, com o brinde de uma visão privilegiada de New York entre o pôr do sol e a chegada da noite. No momento, os tchecos preparam a celebração dos 30 anos da Velvet Revolution / Revolução de Veludo (17 de novembro de 1989). Nomeada em homenagem ao grupo de rock americano Velvet Underground, sua festa deste ano já começou, aqui em New York, com um documentário sobre a Velvet Revolutiion na… Armênia! Também já houve um show do grupo Garage. Seus músicos, 30 anos mais velhos, são os mesmos que levaram multidões `as ruas de Praga em 1989, segundo a descrição do evento na website do BNH. Ou seja, uma das maiores originalidades da Velvet Revolution foi ter sido feita sob a “influência” de um dos grupos mais transgressores do rock americano. A festa oficial, que já tem sua programação anunciada, relembrará, também, os 80 anos da execução (em 1939) de líderes estudantis e um de seus professores pelas forças nazistas que ocuparam o país.

Lou Reed, líder do grupo Velvet Underground e Vaclav Havel, nos anos 80. Este último, dramaturgo, poeta e ensaísta, líder da Revolução de Veludo, e presidente da República depois dela, contrabandeou o disco do grupo que exibe na foto (The Velevt Underground and Nico) e o divulgou no seu país, ainda sob o regime comunista. A amizade entre os dois artistas persistiu ao longo de suss vidas.

Faz um mês, na FIAF – France Institute / Alliance Française of New York, o Fall / outono, estação dos grandes lançamentos culturais de New York, abriu-se com o festival Magnetic Gaze: Isabelle Adjani on Screen / Contemplação Magnética: Isabelle Adjani na Tela. Selecionei do programa The Quartet / O Quarteto (1981). Nele, Adjani, quase menina ainda, interpreta uma jovem imigrada do Caribe – uma créole -, vivendo em Paris durante a mesma belle époque (já anos 20, no caso) do filme Casque D’or. Casada com um jovem polonês, preso por contrabando de antiguidades, sua personagem, sem dinheiro nem trabalho, fica`a mercê das excentricidades sexuais de um casal de socialites ingleses, interpretados por Maggie Smith e Alan Bates, além de outros homens. A história foi criada por Jean Rhyz no livro de mesmo título, que inspirou o diretor americano James Ivory a filmá-la. Como o fez com Howard’s End, romance homônimo do autor inglês E.M. Foster, cujo enredo recriou em imagens igualmente belas e luxuosas. Ivory, na sessão de perguntas e respostas aos espectadores, disse que, no livro, o sofrimento da personagem é ainda maior. Assim respondeu a uma senhora, surpresa com a quantidade de papéis aviltantes oferecidos `a uma atriz tão bonita como Isabelle Adjani.

Dois enfoques cinematográficos masculinos na Paris da Belle Époque, com 30 anos de diferença, Duas belas e competentes atrizes os interpretam. Adiante, duas das minhas versões (ficcional e acadêmica) do feminino.

Lembrei-me de um artigo acadêmico que escrevi faz tempo, comparando Nísia Floresta e Flora Tristán, cujo livro “Pérégrinations d’une Paria / Peregrinações de uma Pária”, relata a dificuldade de uma mulher no século XIX francês, caso não tivesse um marido (1). Flora teve um, gráfico, a quem ajudou profissionalmente por algum tempo, também publicando na gráfica familiar seus textos militantes, os quais, especula-se, foram uma das fontes de Karl Marx. Belíssima filha de uma francesa e de um oficial peruano chamado a lutar na França em defesa do Império Espanhol a que o Peru pertencia, Flora, cansada da vida de casada, pede o divórcio. Deixando para trás os filhos, decide ir ao Peru reclamar a herança do pai, morto na guerra que o convocara, oriundo de uma família de alta estirpe daquele país. Depois de muita luta, conseguiu, com auxílio de um dos seus tios peruanos, ter sua demanda contemplada, podendo, com isso, viver independente até o fim da sua curta vida (morreu de tifo, aos 44 anos).  Sua filha Aline casa-se com Clovis Gaughin, que morre a caminho do Peru, para onde o casal se dirigia, acompanhado dos filhos, dentre os quais se incluía o futuro pintor Paul Gaughin. Mais uma vez, uma Tristán ia em busca do auxílio da rica família peruana. Por conta da morte do pai, Gaughin viveu no Peru parte de sua infância. Esse país e Flora Tristán, sua avó, a quem muito admirava, foram uma referência constante na vida e na obra do pintor. A garra da trajetória de Tristán e da filha, que também viveu sob a tutela de George Sand, amiga de Flora Tristán, mostram sua excepcionalidade na história das mulheres. Poucas tiveram a sorte de encontrar um movimento social e uma atmosfera cultural capaz de fazer brilhar a inteligência que lhes coube. Ainda hoje, muitas atrizes reclamam dos papéis decorativos que recebem na indústria do cinema.

Mas o filme que mais me interessou nestes últimos meses, foi The Birth of the Cool / O Nascimento do [jazz] Cool, uma “autobiografia” do trompetista americano Miles Davis. Stanley Nelson, seu diretor, aproveita uma entrevista de muitas horas, feita por ele com o músico, para realizar o documentário em primeira pessoa. Ao público que lotou uma das salas do recém reformado Film Forum, legendária instituição cinematográfica de New York, o diretor explicou ter contratado um ator para imitar a voz rascante de Miles Davis, adquirida na juventude, depois de uma operação de garganta mal curada por sua negligência em seguir as instruções pós-operatórias dos médicos. “Não se podia aproveitar a gravação, cheia de ruídos externos”, explicou. O melhor do filme é a música de Miles Davis, mostrada em clipes de suas gravações. Amei ver, filmada, a improvisação musical de Davis que compõe a trilha sonora do filme L’ascenseur pour l’echaffaud / Ascensor para o Cadafalso” (1958), de Louis Malle, que considero uma das melhores obras cinematográficas de todos os tempos.

Como fui ver The Birth of the Cool motivada por um conto meu, A Influência do Jazz, onde a figura de Miles Davis aparece como parte do repertório cultural machista que circundava as mulheres anos 50 / 60 do século XX no Brasil, gostei de ver na tela as mulheres com quem o músico compartilhou a tormentosa vida que escolheu. Confirmei ser ele o artista certo para a alegoria daquela atmosfera, na curta narrativa que considero ser a mais “feminista” que já escrevi.

Segue o conto, em português tal como publicado no livro Os ossos da esperança (1994) e, em seguida, na sua tradução ao inglês, The Influence of Jazz, assinada por Treb Winegar, tal como publicada na revista americana The Dirty Goat, número 12 (2002). Em nota, deixo, ao final, o link para o meu artigo acadêmico. No seu original (em espanhol) sobre Flora Tristán e Nísia Floresta.

INFLUÊNCIA DO JAZZ

Lidia Santos

Só agora, depois da morte de Miles Davis, tinha certeza de que ele não tivera essa importância toda na sua vida. Até bem pouco tempo não podia ouvir o som cortante do trompete de Miles sem estremecer. “Diga, querida, quem está tocando o trompete?", a frase vinha imediatamente à sua cabeça. Antes que ela respondesse, ele dizia: “Miles Davis, é lógico." Era o mesmo com Charles Mingus, com Coltrane, com Gillespie, que também acabara de morrer, embora Miles fosse o preferido. Ele se dispusera a ensinar-lhe tudo, e a intensidade do aprendizado acompanhou durante bom tempo as experiências futuras: nada seria igual, ela se afirmava todos os dias e nada mais parece ter-se passado em sua vida nesse curto período. 

- Quem está tocando o trompete?, Miles Davis, my dear - antes que respondesse. Tinha sido assim desde o princípio, ele dizia que era preciso ouvir e ela não fizera outra coisa enquanto tudo durou. “Com quantos compassos se faz um blue?” “Doze”, ela já sabia repetir. Estava agora diante do espelho, esculpindo o rosto em traços de blush. Pensava que o tempo não tinha sido tão implacável, enquanto Billie Holliday cantava When a Woman Loves a Man. Ela sempre preferindo o canto das mulheres, identificação, ele afirmava. Bessie, Billie as grandes rainhas solitárias, durante muito tempo não pôde ouvir Miles Davis. 

Lembrava-se do traço espesso de delineador que se usava naquela época, a arte da maquiagem se desenvolvera muito desde então. O jazz, esse sobreviveu no culto do pequeno círculo que ela nunca mais vira. Hoje os tons são mais suaves e os traços se esfumam num colorido natural. Os azuis e os líquidos verdes, para os dias alegres, indianos negros e púrpuras para as noites trágicas, que ultimamente não havia mais. Maquiar-se permaneceu uma forma de render-se homenagem; se estava triste, era lá, diante do espelho, tendo à frente seu arsenal de pincéis, tinturas, pastas e pós dourados, que tudo se resolvia. 

No princípio era o enfeitiçado trajeto que vai do delta do Mississipi à cidade de Nova York. Gostava de acompanhá-lo nas reuniões dos amigos, em que a falação dele tinha evidente prestígio. Era cômodo, não precisava dizer nada, a música encantadora, ela, a princesa mimada que merecia um afago a cada tirada brilhante. Miudinha naquela ocasião, achegava mais o corpo ao dele e era feliz. Recordava o espanto em seu rosto quando dissera numa dessas reuniões: “Miles Davis é um homem bonito", e como demorara a responder, os olhos fixos nos dela: “Faz sucesso com as mulheres." 

O segundo compasso foi diminuir o tom da voz, porque ele não gostava que o interrompessem enquanto, noite adentro, durassem na vitrola as jam-sessions. Um dia lhe disseram que precisava ir a um médico, ninguém conseguia mais ouvir suas frases, os colegas do trabalho pedindo sempre que ela as repetisse. 

-Quem está tocando o trompete?- Miles Davis - ela respondeu do lado de dentro. — Muito bem, ouviu a voz dele do outro lado da porta. Foi nesse compasso que desenvolveu a arte da maquiagem, talvez para disfarçar as olheiras surgidas com as noites em claro regadas a uísque. Retirava-se para o espelho e, enquanto os solos do Bird entravam por todas as frestas, ela estava diante de si mesma, metamorfoseando-se.

 A transformação foi lenta, mas segura. Um dia, o rosto marcado pela maquiagem pesada, chegou ao apartamento e ele não estava. Sumiu três dias seguidos, ela mudando a pintura a cada três horas, aprendera sozinha muito jazz, ouvindo toda a coleção. Alguma coisa começou a se partir, talvez o espelho, talvez o acetato dos discos, em que, sem a presença dele, percebera pequenos chiados. Ela se vendeu por trinta desculpas, mas a fissura tinha-se instalado. Na segunda ausência, trancou-se no quarto e cortou-lhe à tesoura a roupa prestável, deixando-o com a roupa do corpo. Ele soube, mais uma vez, convencê-la da necessidade da sua presença, mas ela notou-lhe uma ruga no pescoço. A minissaia instalava seu reinado, e os amigos da rua, que ela voltara a procurar, ouviam rock-and-roll. Da terceira vez foi encontrá-los e esqueceu por dias a frase, até que a volta da fechadura surpreendeu o trompete de Miles Davis: “Quem está tocando o trompete?" Ela atravessou a sala e esvaziou o armário de uma só vez, encheu uma mala grande com a própria roupa e nunca mais o viu, porque ele também nem se deu ao trabalho de procurar por ela. 

A notícia veio quase ao mesmo tempo que a da morte de Miles Davis, ele deve ter morrido feliz. A amiga dos velhos tempos fez questão de contar, dentre outras tristezas. Sentiu uma dor funda, que nem de longe trazia de volta a emoção daqueles dias. Além daquele amor, veio junto a lembrança da construção de uma nova capital, da nova arquitetura, da poesia sintonizada com aqueles dias. Pensava isso enquanto Alberta Hunter cantava um país em francês, tinha posto as mulheres a cantar depois de receber a notícia. Fora imediatamente para o espelho, preparava-se para o encontro de hoje à noite, um homem novo em sua vida, promessa de amor mais uma vez renovada.

(in Os Ossos da Esperança, 1994, pp. 83-87)

— Lidia Santos —

The Influence of Jazz

 

            Only now, after the death of Miles Davis, was she certain that he hadn’t been all that important to her life.  Until just a little while ago, she couldn’t hear the piercing sound of Miles’ trumpet without trembling.  “Tell me, dear, who is playing the trumpet?” the phrase came immediately to her mind.  Before she could answer, he would say: “Miles Davis, of course.”  It was the same thing with Charles Mingus, with Coltrane, with Gillespie, who had also just died, even though Miles was the favorite.  He had taken it upon himself to teach her everything, and the intensity of the apprenticeship [accompanied for a long time the future experiences: nothing would be the same, she would tell herself every day and nothing else seemed to have happened in her life during that short time.

            - Who is playing the trumpet?, - Miles Davis my dear – before she could answer.  It had been that way since the beginning.  He would say that she needed to listen and she hadn’t done anything else while it lasted.  “How many bars are in the blues?”  “Twelve”, she had learned to repeat.  She was in front of the mirror now, sculpting her face with touches of blush.  She was thinking that time had not been so implacable while Billie Holliday sang “When a Woman Loves a Man”.  She always preferred the female singers, because she could identify with them, he would assert.  Bessie, Billie, the great solitary queens, for a long time she couldn’t listen to Miles Davis.

            She remembered the thick stroke of eyeliner that she used at the time.  Her art with makeup had greatly developed since then.  Jazz survived in the worship of the small circle that she had no longer seen.  Today the tones are softer and the strokes are shaded with a more natural coloring.  The blues and the liquid greens for the joyful days, the Indian blacks and purples for the tragic nights, of which lately there had been none.  The makeover remained her way of rendering herself homage; if she was sad, it was there in front of the mirror, having before her her arsenal of brushes, paints, shades, and gold powders, that everything was resolved.

            In the beginning, it was that bewitched route from the Mississippi Delta to New York City.  She liked to escort him to meetings with his friends in which his conversation was evidently prestigious.  It was nice, she didn’t have to say anything, the music was enchanting and she, the spoiled little princess who received a caress for every one of his brilliant witticism.  Feeling small on that occasion, she drew her body closer to his and was happy.  She remembered the shock on his face when, in one of those meetings, she had said: “Miles Davis is a handsome man,” and how long he had taken to answer, his eyes fixed on hers: “He is good with the women.”

            The second measure was to quiet her voice down, because he didn’t like anyone to interrupt him at night during the “jam-sessions” on the record player.  One day someone told her that she needed to go see a doctor, because no one could hear her anymore, her co-workers were always asking her to repeat everything.

            - Who is playing the trumpet? – Miles Davis – she answered from inside.  Very good – she heard his voice through the door.  It was doing that that she developed the art of the makeover, maybe it was to disguise the dark circles under her eyes that would appear after the whisky-filled all-nighters.  She would retire to her mirror and while the solos of “Bird” wafted in through the vents, she would stand before herself, metamorphosing.

            The transformation was slow, but sure.  One day, with a heavily made-up face, she arrived in the apartment. He was not there.  He disappeared for three days, and she, while changing her makeup every three hours, learned a lot of jazz alone, listening to the whole collection.  Something began to crack, perhaps it was the mirror, perhaps it was the acetate on the records, on which, without his presence, she had begun to perceive small scratches.  She sold herself for thirty excuses, but the fissure remained.  During his second absence she locked herself in his room and, with a pair of scissors, cut up all of his good clothes, leaving him with only the clothes he had on.  He was able to convince her one more time that her presence was necessary to him, but she realized he had a wrinkle on his neck.

            The miniskirt was beginning its reign and her old friends that she had hunted up again, were listening to rock-and-roll.  The third time she went to find them and for days forgot the phrase, until the turning of the lock interrupted Miles Davis’ trumpet: “Who is playing the trumpet?”  She crossed the room and emptied out the chest of drawers at once.  She filled a large suitcase with her own clothes and never saw him again, because he didn’t even go to the trouble of trying to find her.

            The news came at almost the same time as that of Miles Davis’ death – he must have died happy.  A girlfriend of hers from the old days made sure to tell her, amongst other sad news.  She felt a deep ache, that brought back from far away, the emotion of those days.  Besides that love affair, came the memory of the new capital’s construction, the new architecture, the poetry that went with those times.  She thought about all that while Alberta Hunter sang a country in French. She had had the women sing after receiving the news.  She had gone immediately to the mirror, and was preparing herself for that night’s date, a new man in her life, the promise of love renewed once more.

__ Translated from the Portuguese by Treb Winegar

The Dirty Goat, 2002, number 12. pp. 42-43.

(1) http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v07/santos.html

Os Ossos da Esperança

Acabo de saber que “a última semana de agosto é mundialmente dedicada às vítimas de desaparecimento forçado.” Chico Buarque, a partir dessa notícia, abraçou a participação brasileira nessa campanha sugerindo encher de flores os monumentos dedicados aos desaparecidos políticos no Brasil. Como não estou no país, faço tal doação na forma de um conto meu, construído em torno dos desaparecidos políticos e de suas famílias. Por ele, fui agraciada com o Primeiro Lugar na primeira edição do Prêmio Guimarães Rosa, da Rádio France Internationale / RFI, para contistas latino-americanos de língua portuguesa. Recebi ainda, na Alemanha, onde estive participando da Feira de Frankfurt dedicada ao Brasil, em 1994, sua tradução em várias línguas tal como impressa pela Anistia Internacional nas suas publicações daquele ano. Por tudo isso, seu título nomeou o meu segundo livro de contos, já citado no post anterior deste blog.

Segue o conto:

Os ossos da esperança

Por sorte, ou azar, quem sabe, continuei tendo filhos. Oito no total, com ele nove. Quando a moça bateu palmas lá no portão, eu refletia sobre as criaturas que pusera no mundo. Era cedo ainda, e eu catava o feijão. Separando os grãos, me perguntava se as pessoas não se figuravam da mesma forma: sempre no meio de uma ninhada de filhos, tem aquele que nasce um pouco torto. Não tortura de corpo, porque nem sempre se percebe com a vista, mas aquele dom de sofrer mais que os outros, por ser teimoso ou insatisfeito demais. Esse meu filho, de quem a moça do portão veio falar, tinha sido desse jeito. Desde cedo mostrara seu lado pontiagudo no trato com as pessoas. Foi assim na briga do irmão mais velho, acho que ele próprio tinha sete anos, o irmão apanhou, porque era magrinho e triste, como até hoje. Ele foi à luta e enfrentou os outros três, já marmanjos, no pau. Chegou lanhado, mas dizem que durante a briga não parava de berrar a covardia dos três grandes contra um pequeno. Ainda criança, várias vezes agiu da mesma forma, defendendo tudo que achava justo. Soube sempre falar muito bem, e logo tornou-se a voz da casa. Rapazinho, enfrentava os senhorios, negociava a conta da padaria, de costume atrasada. E sozinho decidiu continuar na escola, quando os outros saíam. Lembro o dia em que veio com um papel pra eu assinar, ainda de calça curta: era a Inscrição na prova para o ginásio público do bairro, explicou. 

Graças a ele, outros irmãos seguiram também o caminho. Mas nenhum gastava tanto tempo estudando. Da cama, antes de pregar os olhos, eu enxergava a permanência de luz na cozinha, pois era na mesa da cozinha, não havendo outro espaço, que ele escrevia. Aos quinze anos arranjou um emprego, mas continuava num curso noturno. 

Então começaram aquelas reuniões. Não sei como agüentava, nos fins-de-semana era reunião o dia quase todo, ou noite adentro. Vinha de longe, às vezes perdia o último trem e chegava de manhã. A rebeldia manifestada desde menino tomara corpo com ele: não era mais o forte colega da escola que não devia tripudiar sobre ninguém, nem o açougueiro exacerbar na cobrança do preço da carne. Agora estavam entre a gente rica os responsáveis pela nossa miséria. Então eu soube que corria perigo. Mas ele já se afastava, as reuniões mais e mais o tiravam de casa, até que disse ter de morar perto da faculdade: queria ser advogado. Eu sabia ser a tal luta contra os ricos que ia levando ele embora, daí meu coração ter reduzido um pouco o tamanho. Aquele filho me fazia muita falta dentro de casa. Ele era o grão torcido, o único a espessar a casca com a injustiça da nossa pobreza. Outros filhos criei pro mundo, mas aquele, que até há pouco tempo pensava ser o único dos meus filhos doado a essa terra sedenta do sangue da gente moça, aquele filho era, naquela época, meu orgulho e meu amparo. O marido se entregara à tristeza, e as outras crias não tinham, feito ele, o dom de trazer o futuro, todos os dias, pro interior das nossas paredes. 

No início, vinha pro almoço de domingo. Deixou endereço e sempre trazia um dinheirinho. Até uma namorada bonita veio com ele uma vez, e fiquei feliz em sabê-lo amado por pessoa de pele tão lisa e clara. Mas logo desconhecíamos onde andava, até aparecer escabriado, olhando em volta como foragido. Me disse não ter mais endereço fixo e usou uma palavra que nunca esqueci: era um clandestino. Vivi um inferno. Caçavam ele e os companheiros por todos os lados, uma polícia feia e mal-encarada como todas as outras um dia invadiu nossa casa à sua procura. A seguir veio a romaria `as prisões, às delegacias e aos hospitais, depois de um amigo dele, também escorraçado, ter trazido o aviso: tinha caído nas mãos dos soldados. Anos e anos de busca vã deram cabo da saúde do pai, morto após o nascimento do nosso caçula, ao certificar-se do que ele era agora: um desaparecido. 

Tanto tempo passado e vem essa moça com a descoberta de uns ossos debaixo da terra que podem ser os dele. Deu a notícia de forma tão delicada quanto os modos daquela única namorada deste filho, clandestino e desaparecido, que cheguei a conhecer. Disse ter custado a me localizar, de todas as mães tinha o endereço, menos o meu, que mudara sem comunicação. Fiquei olhando pra ela muito tempo e não disse palavra. Prometi ir ao endereço indicado e afirmei querer enterrar, sim, os tais ossos. Ela nem precisava dizer: ele era, finalmente, um morto. 

A moça saiu, e me vi com o feijão pelo meio catado, a casa em silêncio porque todos trabalham e os netos estão na escola. Uma única lágrima teimou em rolar sozinha, embora devessem ser pelo menos duas. Tive tanta raiva que varejei os grãos restantes na tigela pela porta da cozinha. Não pude dizer nada. A dor é ainda muito recente. Não pude contar sobre o meu caçula, que como os outros saía pra trabalhar, que com os amigos do bairro ia dançar nos fins de semana, desse que em nada diferia da sua gente, tendo sido sempre um grãozinho absolutamente igual a todos os outros. Não pude explicar ter por isso deixado tudo para trás e até esquecido um pouco o primeiro, perda tão distante. Não pude esclarecer ter perdido este último filho também nas mãos da polícia, com a única diferença de que, se o outro tinha sido antes clandestino e desaparecido, este não passou de ser, desde o princípio, apenas um morto. E pior, porque sem a raiva grossa que levou o irmão pra morte, sem idéia que a justificasse. Largaram o corpo numa vala imunda, o dele e o dos amigos, todos recém-saídos do baile.. 

Porque continuei tendo filhos, mesmo depois de ter perdido o primeiro, por isso me castigaram? Porque continuei morando no mesmo lugar, assistindo a guerra assomar nossas casas sem nada poder fazer, sempre me repito. Então decidimos, eu e a filha largada do marido, que mora comigo, passar a mão nos pirralhos dela e sumir depressa. Talvez em busca do lugar de que falava aquele filho, clandestino, desaparecido e morto, onde tudo seria diferente. Talvez em busca do brilho de sua esperança, embora pressinta, na dor de outras tantas mães que inutilmente perdem seus filhos, o cheiro do seu rescaldo.

Sugestões de locais para a colocação de flores:

– São Paulo, Parque do Ibirapuera, monumento aos mortos e desaparecidos políticos, em frente ao portão 10;
– Recife, rua da Aurora, Praça Padre Henrique; monumento Tortura Nunca Mais;
– Salvador; Praça do Campo da Pólvora, monumento contra a tortura;
– Rio de Janeiro, Praça XV, estátua de Tiradentes; ou na Praça Pio X, Igreja da Candelária.

Informações sobre a campanha e suas fotos, ver Jornal GGN https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/chico-abraca-a-campanha-flores-pelas-vitimas-de-desaparecimento-forcado/


Lembrança de Getúlio


Uma amiga me recordou que hoje, dia 5 de agosto de 2019, faz 64 anos da morte de Carmen Miranda. Em sua homenagem, decidi, em lugar de um texto novo, publicar hoje, aqui no blog, um antigo conto meu, intitulado “Lembrança de Getúlio”, incluído no livro Os ossos da esperança, publicado em 1994 e hoje esgotado. Começo com uma foto do sorriso largo e bem brasileiro dessa portuguesa que adotou o Brasil, pra espantar a tristeza contida nessa curta narrativa que, espero, ajude a refletir melhor sobre a tristeza de hoje.

Foto de Carmem Miranda sorrindo.png

Segue o conto:

LEMBRANÇA DE GETÚLIO


No dia em que enterraram Carmen Miranda, ela, depois de ter passado toda a manhã na fila do velório, havia seguido pela Cinelândia até à Praça Paris. De lá alcançara a amurada da avenida Beira-Mar e estivera muitas horas olhando a baía. Assim contara à Isaura, de quem era mais íntima. Nós somente a vimos passar quando saiu de casa, bem antes do meio-dia. Trajava-se de acordo, a roupa escura, Luzia lembrava ser um vestido cinza-chumbo, a mim me parece que seria um costume azul-marinho, mas a Vanda jura que ela, naquela manhã, usava uma negra saia justa que costumava levar nossos homens à loucura. 

Concordamos quanto ao tom fechado do tecido ressaltar-lhe a pele clara e os fartos cabelos castanhos. Lembramos também de como voltara apressada no fim da tarde. Isaura, vizinha contígua, refaz, ainda hoje, aquela rotina: tinha de estar em casa pelo menos uma hora antes de que o marido chegasse, pra dar tempo de limpar os sapatos e recolocá-los no lugar. Uma pessoa não pode suportar essa agonia, ainda reafirma a Isaura, tantos anos passados. Eram vizinhas de parede e meia, podia saber melhor do que nós. Eu, Luzia e Vanda apenas presenciávamos as suas saídas freqüentes na parte da tarde. Cruzando o portão, cumprimentava-nos com um sorriso ou trocava algumas palavras, enquanto invejávamos nela o corpo esbelto e a maciez da pele, diminuídos quando passava aos sábados, de braços com o marido, os olhos baixos.

Com Isaura se abria: tinha um fogo que a queimava por dentro, uma dor que extrapolava os limites da própria casa. Por isso precisava sair, andar pelas ruas. Caminhava tanto que os pés lhe doíam, as pernas trêmulas. Se lhe indagavam a causa de tal aflição, calada perdia os olhos num vazio de dar medo. Havia também outros pontos de vista. O irmão solteiro da Isaura, agregado há poucos meses à casa da família, dava a entender, segundo nossa amiga, que havia qualquer coisa entre os dois. Sabe como é, macho jovem e livre, ela quase da mesma idade, o marido bem se via ser muito mais velho. Eu tenho pra mim que os homens sempre acham que as mulheres estão querendo e que garoto novo gosta de se exibir. Como se tinham conhecido? Através do muro. Naquele tempo pouca gente tinha geladeira, e o marido da Isaura, que era muito zeloso e parecia ganhar bem, havia comprado uma. Ela, que morava do lado, volta e meia pedia pra guardar coisas na geladeira da Isaura: um pedaço de carne, a fruta fresquinha. Tudo passado pelo alto do muro, onde o rapaz avistara a umidade dos olhos dela. (Não posso negar: minha avó sempre disse que mulher sem-vergonha tem os olhos molhados.) O irmão da Isaura, desde esse dia, ficou obcecado. E a obsessão é a mãe da fantasia. 

Isaura contava também que o marido era muito ciumento. Revistava o armário, cheirava-lhe a roupa. Passou a chegar mais cedo pra ter tempo de apagar os vestígios. Sabia disso pelas próprias palavras dela, porque a casa era muito silenciosa. Mal se ouviam vozes por lá. O único ruído era, como em todas as casas, o do rádio ligado. Pouco tempo antes de tudo acontecer, ela dissera que o marido, acedendo finalmente aos seus pedidos, havia comprado uma vitrola. Agora poderia ouvir Carmen Miranda quando quisesse. E Chico Alves, que embora morto dava gosto escutar. Talvez nem precisasse mais ir aos programas de auditório da Rádio Nacional, uma de suas ocupações vespertinas. Disso tínhamos certeza, porque algumas vezes Isaura e a filha iam com ela. Eu mesma fui uma vez, que nunca esqueci. A alegria de ver Chico Alves cantando, Deus do céu! Nunca me conformei com sua trágica morte. 

Foi num domingo. Isaura conta que a família se preparava pra almoçar, a mesa já estava posta, quando o rosto do marido de Doralice apareceu por cima do muro: “Dona Isaura, a senhora pode vir até aqui? Precisamos de ajuda." A frase confirmava a percepção de um estranho movimento na casa vizinha, alguém batendo insistentemente numa porta fechada. Quando vi a Isaura passar com aquele jeito descomposto, corri a contar pra Luzia e pra Vanda. Nos postamos detrás do muro. Dava pra ouvir muita coisa. 

Mais clara era a voz de Isaura aconselhando a ela pensar melhor, isso não se fazia. Lembrasse do futuro, do desejado filho. Em seguida, o marido dizia precisar dela e corroborava: não fizesse isso. Ouvimos um barulho líquido e um silêncio. Isaura voltara a argumentar, a voz pausada e tensa, o marido não falava mais nada. Um ruído seco soou duas vezes, e percebemos ser o atrito da cabeça de um fósforo na lixa da caixa. Duas vezes. Isaura repetia: “Por favor, Doralice, não faça isso!" Tudo ficou em silêncio por um minuto. Em nova investida, o marido afirmou não viver sem ela, pensasse na família e no que haviam combinado pra reformular a vida. A vitrola, tinha esquecido? Podia ouvir os cantores queridos, era um começo. Isaura relembraria depois que, pela manhã, quando pedira pra guardar coisas na geladeira, Doralice tinha os olhos vermelhos. Recordo de a Isaura ter recomeçado a falar e tenho nítido na lembrança o canto de um bem-te-vi na mangueira do quintal mais próximo. Um tranco da Vanda me despertou: “Três vezes agora!” Só ouvi o último riscar do fósforo e a volta da chave na fechadura, porque a explosão do fogão irrompendo na sala logo atravessou o muro. Isaura gritou por um cobertor pra abafar o incêndio, e a voz de Doralice implorava que não deixassem queimar-lhe os cabelos. 

Luzia, que já morreu, ao narrar essa história afirmava que, na hora da ocorrência, Carmen Miranda cantava “Camisa Listrada" num rádio distante. Vanda jura que, por estranho que pareça, a vitrola da casa estava ligada e Chico Alves, naquele momento, dava adeus à Serra da Boa Esperança. O meu fraco sempre foi a memória, que anda piorando com a idade, de modo que não há jeito de lembrar. Por isso prefiro crer na Isaura, que, tendo presenciado diretamente os fatos, menos se há de enganar. Segundo ela, o marido, numa última tentativa, havia recolocado o disco que soara na casa antes de ter início aquela estúpida brincadeira, e, de verdade, no instante em que o bólido de fogo invadiu a sala pequenina, Carmen Miranda denunciava: "Disseram que voltei americanizada..." 

Só consigo ter certeza da morte de Getúlio Vargas. Quando tudo aconteceu, fazia pouco mais de um ano que também ele se havia matado com um tiro de revólver. Decretaram feriado, e todos nós, inclusive Doralice e nossos maridos, tínhamos chorado muito.

Margot e Juscelino: Um Pas-de Deux Bossa-Nova

Fui ver "Nureyev", documentário composto pela biografia do bailarino russo, ou tártaro, como ele ressalta em entrevistas nele incluídas. A crítica não gostou muito do resultado. Eu sim. Não tanto pelo filme em si, mas pela retrospectiva da época da Guerra Fria e de outros eventos históricos, na antiga União Soviética e fora dela. Como fui ao cinema interessada nesses temas, “Nureyev” me satisfez. Fora algumas citações beirando o kitsch e um excesso de apego `a cronologia da vida do biografado, agradeci cada minuto da beleza do bailarino e da genialidade de suas performances. Não sendo fã ardorosa do ballet nem acompanhando seus astros, o filme foi ainda uma oportunidade e tanto para conhecê-los melhor. (1)

 O documentário me presenteou, finalmente, a narrativa do encontro, em 1961, de Nureyev com Margot Fonteyn, quem, a partir de então, apesar de ser 19 anos mais velha do que o bailarino “russo”, fez dele seu partner. Parceria que lhes valeu fama universal, mesmo depois de passados os 18 anos que ela durou. `A menção do nome de Fonteyn e ao vê-la dançando, acendeu-se uma luzinha na minha memória. Lembrei-me dos comentários sobre suas raízes brasileiras. Fui pesquisar.

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Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev

Luis Nassif, num obituário de Jacinto de Thormes / Maneco Muller, começa, com a “brasilidade” de Margot Fonteyn, a relação das muitas “lendas cariocas” desconstruídas pelo colunista social que acabava de morrer: “Como o caso de Margot Fonteyn, das maiores bailarinas do século, nascida em 1911, morta em 1991. Nos anos 40, a maior fortuna do Rio era a de Ernesto Fontes, dono de indústria têxtil no Brasil e em Londres. Quando veio para cá [para o Brasil], deixou um irmão tomando conta dos negócios em Londres. O irmão foi o verdadeiro pai de Margot, o nome ausente em sua certidão de nascimento, que só mencionava a mãe.” (2)

 Cruzando essa informação com o primeiro capítulo da biografia de Margot Fonteyn escrita por Meredith Deneman (3), descubro que o Maneco não era tão bem informado assim. Em primeiro lugar, ela era neta do brasileiro Antonio Gonçalves Fontes, irmão, sim, de Ernesto. Mas não sua filha. E a verdadeira data de seu nascimento também põe em dúvida se a indústria dessa família seria ainda tão poderosa nos naos 40. Margot Fonteyn nasceu, segundo sua biógrafa, em 1919. Essa descoberta agrega um objetivo mais deste post: prestar homenagear aos 100 anos do nascimento daquela que foi um símbolo da dança clássica do século XX. Deneman relata detalhes não muito edificantes sobre esse avô brasileiro de Margot Fonteyn. Deixo a referência em nota, abaixo, para que os curiosos possam conhecê-la. Só digo que a morte da irlandesa Evelyn Acheson, avó de Margot, vítima, aos 29 anos, de uma cirrose, deixa órfã Hilda Acheson Fontes, filha de sua relação fortuita com o empresário brasileiro. Ainda segundo Deneman, o pai a visita, ainda menina, trazendo de presente uma boneca muito bonita. Ocasião em que outro comportamento duvidoso de Antonio Fontes faz a filha afastar-se dele no ato mesmo desse primeiro encontro.

 A biógrafa americana, tal como eu, não se interessou mais por Antonio Fontes neste primeiro capítulo de sua biografia de Margot Fonteyn.. Vai direto `a superação, pelo casamento, dos problemas de Hilda Acheson Fontes como órfã de mãe solteira na época vitoriana, criada de favor por parentes distantes. O noivo, Felix Hookham, era um estudante de engenharia mecânica, carreira técnica oferecida pela universidade de Manchester, localizada na cidade do mesmo nome, onde eram vizinhos. Já formado e capaz de dar `a família uma vida condizente com sua origem cockney e sua correspondente classe social em Londres, percebeu na menina nascida desse matrimônio um talento inato para o movimento gracioso do corpo. Ambos – pai e mãe -  a encaminharam`as aulas de dança, onde imediatamente confirmou-se certeira a observação dos pais.

Pode ser que alguma relação com os ancestrais brasileiros se tenha mantido. Pelo menos é o que transparece na decisão da bailarina, muito jovem ainda, de mudar o seu nome, uma das alternativas de metamorfosear-se de cockney em gente “fina”. Assim, Margaret, seu primeiro nome, a essa altura transformado no apelido “Peggy” tornou-se Margot (afrancesado, mais de acordo com o ballet). Já o sobrenome, claramente percebido, na sociedade inglesa, como sinal de origem bem distanciada da aristocracia, público que ocupava os camarotes dos teatros onde a jovem estava pronta a apresentar-se, foi retomado do avô brasileiro, depois de devidamente adaptado `a sonoridade e `a grafia da língua inglesa: Fonte [s]-yn.” A resenhadora da biografia da bailarina escrita por Deneman no The Guardian, citando outra parte do livro, conta como o irmão de Margot, impressionado com a riqueza dos seus ancestrais brasileiros (depois de visitá-los, talvez), adota, daí em diante, o mesmo sobrenome. Embora essa informação não se confirme nos arquivos da biblioteca da Universidade de Bristol, como mostra a legenda da foto abaixo.

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Peggy Hookham (Margot Fonteyn) with a friend, Tientsin

University of Bristol - Historical Photographs of China reference :number Hh-s010. Peggy Hookham (later Margot Fonteyn, 1919-1991) is on the right. Ano Estimado: 1930. Arquivo de seu irmão, Felix Hookham.

Aonde me leva tudo isso, você deve estar-se perguntando. `A Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil de 1956 a 1961, meu caro Watson leitor, como diria Sherlock Holmes, se de uma história sobre ingleses se trata.

 Porque a vida de La Fonteyn seguiu, como num conto de fadas e de bailarinas, com muito sucesso e melodrama. Depois de relações frustradas com homens do seu métier (colegas e professores), Margot reencontra, como sua mãe, um estudante com quem se casa anos depois, em 1955. Só que este era aluno de Cambridge, que ela conhecera ao aí apresentar-se como bailarina, em 1937. Chamava-se Roberto “Tito” Arias e descendia de uma família oligárquica do Panamá, que já dera e esse país centro-americano três presidentes. Era jornalista nas empresas de comunicação da família e mulherengo como o avô de Margot. Para casar-se com ela, divorciou-se da primeira mulher, que lhe dera três filhos.

Claro que disseram que o golpe de Estado que ele arquitetou, em 1959, para derrubar um presidente-ditador que, obviamente, não era de sua família, foi perdido porque Fidel Castro (ah, um comunista!, como se acusa sempre) recém chegado ao poder no mesmo ano - o que põe em dúvida tal suposição -, falhou no apoio que prometera. Quem lhe concede asilo político? Juscelino! Primeiro na embaixada do Brasil em Londres, onde “Tito” era embaixador do Panamá; e depois no Rio, onde, hospedado o casal no Copacabana Palace, revelou-se `a elite da ainda capital da república a origem de Margot Fonteyn na família de um “rico” industrial brasileiro. Ou isso já era, como dizia Maneco Muller, uma das lendas do Rio de Janeiro tão aristocrático quanto Londres, ou do Brasil, tão oligárquico quanto o Panamá. De toda maneira, a história deve ter sido perfeita para reforçar a percepção da oportunidade que esse asilo representava: traria mais prestígio político `a Juscelino e ao Brasil no exterior. Quem sabe se a iniciativa partiu da própria Margot? Ou de sua família brasileira, que, a esta altura, orgulhosíssima do seu sucesso, já devia tê-la incluído na sua árvore genealógica e até, quem sabe, atribuído seu talento para a dança `a sua origem brasileira?

Seja como for, Margot Fonteyn, como era de sua natureza, logo arregaçou as mangas. Apresentada, outra vez por contatos palacianos, `a jovem amante do ballet Dalal Achcar, leva esta a Londres, onde, diz Dalal, lhe ensinou tudo que ela até hoje sabe. Volta, como prometera, ao Brasil, fazendo um tour profissional pelo país, assim descrito pela amiga e protegida brasileira: “em condições indescritíveis, que só a Margot poderia [aceitar] fazer.” Mais tarde, em plena ditadura militar, ela e Nureyev se apresentaram num Municipal completamente lotado, seguido, a pedido da amiga Dalal, de um concerto popular no Maracanã, em 1967.(5)

 Enquanto isso, Juscelino construía Brasília, “a toque de caixa”, segundo Oscar Niemeyer. Corria contra o tempo: estava no antepenúltimo ano de um governo que, tendo como colaboradores arquitetos, urbanistas, artistas, poetas e músicos, só teria a ganhar com a dança, que praticamente se jogava em seus braços com o pedido de asilo de Margot Fonteyn. Embora a passagem da bailarina desse frutos somente após o término do seu governo, este criou as condições para que aflorassem os movimentos culturais e artísticos que se vinham gestando durante e depois do último governo Vargas.  Desde os exilados pelo próprio Vargas, como Nise de Silveira, que revolucionou o tratamento psiquiátrico do Hospital do Engenho de Dentro com um ateliê de que participaram artistas como Ivan Serpa, Abraham Palatinik e Almir Mavignier, ao crítico de arte Mario Pedrosa que, além de manter uma coluna no jornal Correio da Manhã, foi também formador de artistas como Livio Abramo, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Ligia Clark. Se tais artistas se originavam na elite intelectual e econômica (mas também culta) que acreditava estar o Brasil pronto para uma experiência mais internacionalista (ao contrário do nacionalismo presente na geração modernista), o país experimentava ainda o influxo dos intelectuais e artistas exilados da Europa sob o nazismo, ou dos que, já famosos, estavam impedidos de realizar suas obras pela falta de incentivos financeiros na sua Europa empobrecida pela guerra.(6) Assim foi que Juscelino presidente, ajudado por sua personalidade sempre aberta `as novas idéias, viu nascer a Poesia Concreta e a Bossa Nova, que ajudou a exportar. Nas fotos abaixo, em carrousel: 1) Juscelino sendo presidente: 2) A equipe que projetou e construiu Brasília. Da esquerda para a direita da foto: Lúcio Costa (recuado, ao lado de JK); Israel Pinheiro (atrás), Niemeyer (de frente para a câmera e ao esquerdo de lado de JK, ao fundo. 3) JK recebe Vinícius de Morais e Luis Bonfá na época da produção do filme “Orfeu Negro”.

A morte recente de João Gilberto, acrescentou a esta já longa memória a lembrança das críticas que, por outro lado, se faziam a JK, como as contidas nas canções do “trovador” Juca Chaves, um dos primeiros músicos pop a se valer da televisão recém-implantada no Brasil (em 1950). Numa delas, intitulada Presidente Bossa-nova, Chaves fazia alusão `a prática de “dancinhas” por parte de suas duas filhas.

 Apesar de todos os seus (bem)feitos, Juscelino morreu vilipendiado (dentre outras “faltas”, tachado – isso não é novo! - como corrupto) tendo sido, talvez, assassinado pela ditadura militar. Margot Fonteyn, viúva de um marido que, a partir dos seis anos de casamento, se tornou quadriplégico em consequência de um atentado político que sofreu. Reclusa na fazenda do casal no Panamá, foi vitimada por uma doença terminal cujo tratamento terminou de arruiná-la financeiramente.  A vida de ambos nos faz lembrar os célebres versos de Shakespeare postos na boca de Macbeth:

“Life's but a walking shadow, a poor player,

That struts and frets his hour upon the stage

And then is heard no more. It is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing.” (5.5, 24-28)


A vida é apenas uma sombra andante, um pobre ator

Que se pavoneia e se gasta durante sua estada no palco,

E depois ninguém mais o escuta. [A vida] É uma história

Contada por um idiota, cheia de som e de fúria

Que nada significa.”(Ato 5.5, linhas 24-25)”

 

Será essa citação aplicável `a vida das repúblicas? A nossa, que teve seu início marcado por militares Bossa-Sangue como Deodoro e, principalmente, como Floriano Peixoto, que sufocou com uma sanha indescritível várias revoltas populares, teve os seguintes presidentes oligarcas da Bossa-Velha varridos pela Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, outro Bossa-Sangue que, num segundo mandato, volta, eleito por voto popular, como Bossa-Sorriso. Depois dele, alguns, por sua falta de carisma, como Dutra, por exemplo, passaram `a História como Bossa-Nadas. Mas tivemos ainda um Bossa-Doce, como Jango; e os Bossa-Loucos, como Jânio e Collor. Sem falar na volta, por vinte anos, dos Bossa-Sangue militares, que exercem uma atração enorme sobre os eleitores dos Bossas-Velhas, cada vez que os “de baixo" começam a levantar a cabeça. Mas também, depois deles, elegemos FHC, um Bossa-Verniz, e Lula, um Bossa-Encarnada, nos dois sentidos da palavra. Dilma foi uma Bossa-Escondida, porque só a revelou depois do seu impeachment. Toda essa trajetória, mal aproveitando a citação do bardo inglês, para assistir diariamente o “mau ator” que nos governa “pavonear-se e gastar“ a nossa paciência. Apenas para, no fim do dia, deixar-nos a sensação de que, nós e nossa república, nada mais significamos. A proximidade desse “elemento” recém eleito com qualquer tipo de bossa é puramente fonética: no ano em que completaremos os 130 anos da nossa república, empossamos um boçal como presidente (com as devidas desculpas ao povo preto, já que assim os brancos chamavam os seus escravos recém-chegados ao Brasil) .

 

NOTAS:

1 https://www.pointemagazine.com/nureyev-documentary-2019-2631616063.html

 2 FOLHA DE SAO PAULO. Mercado. São Paulo, domingo, 11 de dezembro 2005. 

 3 Daneman, Meredith. Margot Fonteyn. New York:Viking/Penguin, 2004. 654 pp. As informações sobre a biografia de Fonteyn foram obtidas através da reprodução do primeiro capítulo desse livro no New York Times : https://www.nytimes.com/2004/12/05/books/chapters/margot-fonteyn.html?module=ArrowsNav&contentCollection=undefined&action=keypress&region=FixedLeft&pgtype=article e da resenha deste livro, escrita por Jann Parry, publicada pelo The Guardian: https://www.theguardian.com/books/2004/oct/31/biography.stage

 4 https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/05/130502_panamagolpe_bailarina_pr

 5 https://oglobo.globo.com/cultura/ballet-dalal-achcar-completa-45-anos-formando-geracoes-no-rio-20333386

 6 Madeira, Angélica, “O concreto Desarmado”, o Brasília e Construtuvismo: Um Encontro Adiado. 20 de julho a 19 de setembro de 2010. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil. 7-29.