Dentro de Casa: Peru, Brasil e Beleza Feminina

Ela estava empoeirada. E eu, culpada pelo seu abandono. Logo ela, que cumpre a função de dar boas vindas aos nossos visitantes, pensei. De imediato, interrompi todo o plano do dia: ia cuidar da sua higiene. Tirei-lhe do corpo a fina camada de pó com muito cuidado, Antes, saiu de sua cabeça o chapéu que, acho, ela usava desde o último carnaval. Assim como a peruca que, comprada numa loja de fantasias de Halloween, em New York, não combinava, nem com o clima de um Rio de Janeiro carnavalesco, nem com o da cidade em que a encontrei, onde e quando teria usado uma longa peruca ruiva que me fez atribuir-lhe, no ato do seu achado, o nome de Rita Lee, escolha também feita pela cor de sua pele e por seus olhos azuis.

 Rita Lee mora aqui em casa faz uns sete anos, porque me lembro de que o museu em cujos arredores a encontramos foi inaugurado em 2012. Nossos familiares e amigos de Lima, onde nos encontrávamos, nos aconselharam a visitá-lo, já que, comemorando seu primeiro aniversário, lá se exibiam exposições especiais. Acrescentaram, especialmente para mim: “porque o fotógrafo Mario Testino, que o fundou para garantir na cidade onde nasceu um lugar para abrigar sua obra, tem ligações com o Brasil.” Foi ele quem fez da nossa Uber model Gisela Bünchen uma celebridade, contam, inclusive, todos os folhetos do museu.

Aceitamos com prazer a sugestão, que nos daria, ainda, a chance de passear por Barranco, um bairro cuja arquitetura de outros tempos e ruas ainda pacatas, estimula a concentração, nele, de grande parte da vida cultural e boêmia de Lima.

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Testino é, de fato, um grande fotógrafo. E, verdade, mantém, numa das salas da casona de Barranco onde instalou o MATE / Museo Mario Testino (foto acima), uma sala inteira destinada `a Gisele Bünchen. Mas o traço marcante do seu trabalho lá exposto é o aproveitamento da sua experiência na fotografia de moda para promover a cultura peruana. Por sua arte, a colorida e artesanal vestimenta das comunidades andinas do Peru se emparelha com a sofisticada alta costura do Hemisfério Norte. O que não é nenhum favor, tendo em vista que, se a tecelagem e a estamparia daquela roupa feminina tem raízes locais, os modelos da vestimenta seguem o figurino da vestimenta que as espanholas colonizadoras usavam nos séculos coloniais.

Compramos no MATE, por exemplo, a foto abaixo (hoje numa das paredes do nosso apartamento do Rio), onde a beleza da mestiza e a elegância de roupa que veste recebem um tratamento `a altura do que recebem as top models globais da parte de Mario Testino. Sua escolha do torso da modelo, por outro lado, realça o encarte de rendas européias no tecido indígena e as jóias, em legítima prata peruana, trabalhadas com a técnica da filigrana espanhola.

Quanto `a Gisele Bünchen, apesar da sala a ela dedicada, me pareceu que a lembrança mais original (e talvez única) posta `a venda no MATE era o ímã de geladeira em que ela aparece como uma pin-up girl sensual, imagem que jamais vi circulando no Brasil, a não ser, depois dessa minha viagem ao Peru, na minha casa e no meu refrigerador.

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Tenho voltado ao MATE a cada nova visita `a Lima, também motivada pela parte externa da casa, ocupada por um café super simpático, instalado no seu jardim. Dessa primeira vez, no entanto. foi um latão de lixo que me chamou a atenção. Posicionado junto a uma árvore na vizinhança do museu, continha algo que já de longe me pareceu interessante. De dentro do negro saco plástico que ele continha, saltava uma cabeça feminina, branca e careca. Ao lado, de outro saco negro saía uma cabeleira de ruivo cabelo sintético. Era um manequim, desses usados nas lojas de roupa feminina. Obviamente, havia sido utilizado em alguma exposição de arte, das muitas que ocorrem nas diversas galerias do bairro de Barranco. A personagem que ele encarnara parecia sofrida: do nariz lhe saía um fino fio vermelho, também repetido em outras partes do corpo, onde algumas escoriações causadas pelo transporte ao lixo também se evidenciavam. A moça tinha olhos azuis e uma expressão muito triste no rosto. No saco da peruca, um pequeno recipiente de tinta lavável vermelha e alguma purpurina confirmavam a minha suspeita de que teria sido parte de uma performance artística.

Apoiada numa dessas árvores do bairro de Barranco nos arredores do MATE, acima fotografadas, estava a lata de lixo onde a Rita Lee peruana foi encontrada. Na falta de registro, segue um simulacro desse encontro.

Um sobrinho do meu marido peruano, e sua namorada, nos acompanhavam. A jovem, imediatamente, se entusiasmou pelo meu projeto de trazê-la para o Rio. “Sim, disse, você pode vesti-la, pôr-lhe adornos!” Por coincidência, tinha dedicado grande parte da minha última temporada em New York em procurar cabeças de manequins para acomodar minha coleção de chapéus, instalada onde quer que eu viva. E agora me aparecia um manequim – quase – inteiro. Porque, na verdade, a moça só tinha torso. O que era ideal, considerando a estante que temos no Rio para a sua morada.

 O ponto decisivo, no entanto, não foi nenhuma dessas características. O detalhe mais marcante foi a sua falta de braços.

 Mais que uma história para contar sobre a Rita Lee peruana, eu teria um poema peruano para citar aos meus amigos. Um dos meus preferidos, escrito por um dos grandes poetas da língua espanhola, no livro que considero um tratado sobre a ruptura modernista no uso da linguagem. Rita Lee era muito pouco para nomear a recém aparecida manequim peruana: ela seria a Vênus de Milo de Cesar Vallejo, aquela da “imperfeição perene / la perene imperfección ” que clama o poema XXXVI do seu livro Trilce (1922):

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Para não sentir “que está / em sitio donde no debe // que está / em lugar onde não deve” continuei chamando-a de Rita Lee. É o nome de uma famosa cantora de rock brasileiro, da mesma cor de pele e com os mesmos olhos azuis da manequim de Barranco. No nome, a Ria Lee brasileira traz ainda sua ascendência nos imigrantes americanos que chegaram ao Brasil após a derrota sofrida por eles na Guerra Civil dos Estados Unidos. Instalaram-se, principalmente, no centro-oeste paulista, onde, por exemplo, deixaram os traços da sua língua nativa no “r” da região.

Ao descobrir, quando a embalava para vir ao Brasil, que justamente a cor e as características do seu corpo talvez tenham sido a causa do seu sofrimento, tive certeza de ter acertado na escolha do seu nome. Num dos jornais velhos usados para acolchoá-la, se noticiava, poucos meses antes da nossa partida, ter acontecido uma exposição de arte visual em Barranco, cujo tema teria sido o questionamento do uso de manequins brancos e de traços arianos para vender roupa a uma população majoritariamente de origem autóctone e / ou de ascendência indígena.

 O mesmo tipo racial dos que, num mercado municipal onde se vende comida e artesanato locais, nos ajudaram a fazer da Rita Lee peruana uma múmia contemporânea, chegada ao Rio de Janeiro sem nenhum arranhão.

 Desde então, com o torso coberto de colares vindos de diferentes partes do mundo, ela me recebe com seu olhar enigmático – mais de Mona Lisa que de Vênus de Milo – a cada vez que abro a porta. Nesses tempos de quarentena, virou guardiã: marca a entrada da “zona limpa” da casa.

 A cada abertura da porta, ela renova, em quem quer que entre em nossa casa, os diferentes conceitos de beleza feminina, que o olho de Mario Testino, empoderado pelas lentes fotográficas, tão bem explicitou. O barateamento do padrão exigido pelo Ocidente para alcançar tal beleza, ajuda, por outro lado, a revelar o substrato nela contido de uma variedade de culturas crescidas em outras latitudes. Neste tempo de atenção extrema em que estamos vivendo, faz bem saber que elas existem e que há artistas de várias linguagens que as traduzem para nós. Lembrar e cuidar dos detentores dessas culturas e dos artistas que nos revelam a sua arte é uma tarefa imprescindível na preservação da nossa humanidade.