Da cinemateca do MAM `a Truffaut no Estação: O Cinema na Vida da Minha Geração

A grama do Aterro voltou a mexer comigo no primeiro sábado de 2020. Na noite de 7 de janeiro, ao assistir o (excelente) espetáculo François Truffaut – O Cinema é a Minha Vida, no Cine Estação Botafogo, minha memória trouxe de volta tudo o que vivi e aprendi na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, o MAM do Rio de Janeiro.

A peça foi idealizada por Patricia Niedermeier, (que encarnou com perfeição, sendo atriz principal, o diretor francês que dá título a peça), Rodrigo Fonseca e Cavi Borges, para comemorar os 60 anos do primeiro filme de Truffaut, “Os Incompreendidos” (1959). O cenário aproveitou a tela de cinema da sala 4 do Estação. Nela se exibiam partes de filmes de Truffaut, entremeadas `as falas de Truffaut/Patricia. Os três compõem a Cia. Cavideo. Os dois rapazes foram os diretores, tendo Rodrigo Fonseca (`a esquerda, na foto abaixo), curador de programação do Estação Net Botafogo, também aparecido como ator.

François Truffaut: O Cinema é a Minha Vida

François Truffaut: O Cinema é a Minha Vida

De cara, lembrei-me de que sem a Cinemateca do MAM eu talvez não tivesse feito de François Truffaut um dos meus diretores preferidos. Porque a Cinemateca nos proporcionava um verdadeiro curso de história do cinema, introduzindo seus frequentadores não só nos primórdios da “sétima arte” – como a coleção bastante completa do filmes do russo Sergei Eisenstein, por exemplo – mas também na consecutiva produção cinematográfica de igual qualidade. Na grama do Aterro se localizava o fórum de debates sobre os filmes que víamos, ou nos preparávamos pra ver na cinemateca. Do cinema russo ao neo-realismo italiano. E, claro, da nouvelle vague francesa, da qual Truffaut foi um dos iniciadores. Ver tudo isso hoje continuado nos cinemas do grupo Estação foi super gratificante.

Nossa geração se acostumou a dividir o elevador de acesso `a sala de exibição / auditório da cinemateca do MAM com Glauber Rocha. Era um dos nossos, mesmo que sua resposta ao nosso “Oi, Glauber!” fosse, na maioria dos casos, um meio sorriso, ou um olhar amigo e indecifrável.

Outra figura emblemática era o Cosme (Alves Neto), curador da Cinemateca por trinta anos. Mas pra nós, o grupo de cine-clubistas e / ou amantes do cinema que ele ajudava a formar com o acervo que ia fazendo crescer, ele era apenas “o Cosme”, aquele que nos emprestava os rolos dos filmes pra gente passar nos cineclubes. Nas suas próprias palavras, citadas no filme Tudo por Amor ao Cinema (Aurélio Michiles, 2014), feito em sua homenagem, “uma cinemateca não deve ser um museu; ao contrário, ela é apenas um lugar de armazenar um acervo que tem que circular, chegar a mais gente”. De posse dos rolos da Cinemateca do MAM nos nossos cineclubes, na maioria dos casos situados em bairros distantes da sua morada, “conscientizávamos” a população sobre os males da ditadura militar brasileira.  

Participei de vários cineclubes. Como espectadora, como colaboradora e até como professora. Com os alunos do colégio estadual Brigadeiro Schort, no bairro da Taquara, cidade do Rio de Janeiro, reativei o cineclube C.A.S.A. (Casa dos Amigos da Sétima Arte) que, inaugurado durante a gestão da professora Henriette Amado como diretora, tinha sido fechado pela ditadura. Como o anterior, o novo C.A.S.A. ofereceu uma atividade extracurricular (e cultural) aos alunos. Para tanto, tive o incentivo e contei com o apoio da saudosa colega Lygia Malaguti, uma das professoras da equipe anterior, que preferiu manter-se no colégio depois da transferência de Henriette Amado para o colégio André Maurois, no Leblon. Lygia mantinha funcionando a excelente biblioteca do Brigadeiro Schort. De onde saiu, poucos anos mais tarde de sua experiência no C.A.S.A., o talentoso e produtivo roteirista cinematográfico Paulo Halm, nosso aluno secundarista, agora formado pelo curso de Cinema da UFF, que tinha como diretor Nelson Pereira dos Santos, outro ídolo com quem cruzávamos a caminho da Cinemateca do MAM.

No antigo município de Cabo Frio, onde vivi de 1980 a 1985, os rolos de filmes emprestados pelo Cosme/Cinemateca do MAM, pela Federação dos Cineclubes / RJ, pelo Instituto Goethe e por algumas outras potentes instituições culturais do Rio, foram por mim exibidos com o auxilio da saudosa amiga e animadora cultural Olímpia Leite e outros cabofrienses valorosos. Chegaram `as ruas de bairros de pescadores e ajudaram no movimento de associações de bairro, importado da capital do Estado, onde este tipo de movimento social estava no seu auge. Também em Arraial do Cabo, sob a aba da saudosa Amena Mayall, filósofa e artista de muitos talentos e atividades, dentre as quais, a de pesquisadora e defensora do meio-ambiente e da cultura da região do Lagos, ajudei a divulgar a cultura cinematográfica. Arraial do Cabo, filme com que Paulo César Sarraceni, inaugurou o Cinema Novo em 1959, era o carro-chefe do sucesso das sessões de cinema entre os espectadores do Centro Cultural Manoel Camargo, que Amena dirigia naquela cidade. A cada vez (das muitas) que era exibido, os espectadores deliravam. Reconheciam nas imagens a si mesmos, seus amigos e pessoas da família. Alguns, meninos na época das filmagens e então adultos; outros, já mortos.

No universo de hoje, a revolução da imagem suplantou a da música, descrita pelo educador musical Murray  R. Schaffer, no final dos anos 80, pela sua total onipresença e por sua capacidade de “sair de qualquer lugar” e ser por todos reproduzida.

Com isso, fica difícil imaginar a novidade que, com muito orgulho, me contou a diretora de cinema (de quem, infelizmente, ainda não consegui recuperar o nome), que nos anos 80 do século passado acompanhou com sua câmera a luta dos trabalhadores da zona rural de Cabo Frio contra Jamil Miziara, o proprietário da empresa em que se transformara a fazenda Campos Novos, construída pelos jesuítas. Por isso mesmo também parte do Patrimônio Nacional Brasileiro (hoje tombada). `Aquela altura, o sujeito tocava a fazenda usando jagunços e grileiros para evitar sua desapropriação para fins de reforma agrária pelo INCRA.

Nunca esqueci o depoimento da cineasta ao final da sessão que organizamos para exibir a parte do copião do filme que mostrava essa luta na região; “Ao ver, pela primeira vez, essas imagens de Miziara, com quem fazia anos lutavam juridicamente, a reação dos camponeses era impactante, sempre”, disse ela. E continuou: “De minha parte, ver essa reação foi a prova cabal da importância do cinema no trabalho de conscientização política”.

Infelizmente, o cinema não foi capaz de impedir o assassinato de Sabastião Lan, líder dos camponeses da Fazenda Campos Novos, no ano de 1988, em plena rodovia Amaral Peixoto, a caminho de uma reunião a ser realizada no Ministério da Reforma Agrária, em Brasília, onde defenderia, com documentos, a posse da terra pelos camponeses que nela trabalhavam. Crime cometido no mesmo ano em que todo o Brasil acompanhava os trabalhos da Assembléia Constituinte que redigiu a Constituição pós-ditadura, desde então em vigor e hoje ameaçada. Ver a história completa da fazenda e do conflito de Campos Novos no documentário (de 20 minutos) Lan (1988), de Milton Alencar: https://www.youtube.com/watch?v=yBcMmc7u5PE

Sabia que o movimento cineclubista, além de ter gerado profissionais do cinema brasileiro, tinha evoluído, com o término da ditadura militar, para a fundação de cinemas comerciais com ênfase no “cinema de arte”. Foi o caso do Estação Botafogo, que leva esse nome devido a inaugurar-se junto com a primeira linha de metrô da cidade, cuja única estação do bairro ficava, como até hoje, quase ao lado do cinema. Ele foi o primeiro a incluir antigos cineclubistas na sua direção, seguido pelos atuais Estação Net Rio e Espaço Itaú de cinema, que fizeram de Botafogo o bairro mais frequentado pelos cinéfilos do Rio de Janeiro.

Mas a surpresa mais feliz dessa noite foi perceber a continuidade do “espírito cineclubista” na exibição daquela peça-filme na menor sala, logo, a mais “íntima”, do cine Estação Net Botafogo. Montar nela uma peça de teatro onde o cinema é o tema central, homenageando um cineasta que, por sua vez, também chegou `a sua arte através dos cineclubes francesas que ajudou a fundar; por ter como ator um dos curadores do cinema onde a peça se apresentava; por estimular um debate sobre ela após sua apresentação: tudo isso demonstra que o cineclubismo não está morto. Sua continuidade pode ser atestada, ainda, na programação do evento  "OCUPAÇÃO SALA 4" no mesmo cinema , de 4 a 31 de março próximo, onde se incluem “quatro cineclubes”.

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Nesses tempos de novas – e mais medíocres – perseguições ao trabalhadores da cultura, mais do que nunca a experiência cineclubista é um manancial de sugestões de como resistir `as tentativas de destruição da cultura construída pelo trabalhador cultural ao longo dos anos, com muita luta e muito trabalho, quase sempre voluntário. Como disse no post anterior, perpetuemos essa continuidade.

Resistir `as tentativas cotidianas de destruição é a nossa tarefa. A mais urgente.

Nota: A cia Cavideo continuará o resgate da Nouvelle Vague com a peça Marguertte Duras, incluída no evento Ocupação da Sala 4, citado acima. Para a história dos cineclubes, recomendo o livro escrito por uma historiadora e cineclubista: Matela, Rose Clair. Cineclubismo. Memórias dos Anos de Chumbo. Rio de Janeiro, Ed. Multifoco, 2008. 204 p. Isbn: 9788560620296