"Na grama do Aterro, sob o sol"

“Bem que eu me lembro, a gente sentado ali:

na grama do aterro, sob o sol

Observando hipócritas disfarçados rondando ao redor.

Amigos presos, amigos sumindo assim,

Pra nunca mais…

Mas recordações, retratos do mal em si,

Melhor é deixar pra trás...”

Gilberto Gil

(Letra da versão da música No woman, no cry, de Bob Marley)

Uma amiga que se auto-exilou na época a que se referem os versos de Gilberto Gil que cito acima, me contou que, na volta ao Rio, se alegrava ao encontrar um bar que costumava frequentar, algum cinema onde gostava de ir e até de passar por gente que conhecia de vista. “Era um alívio”, ela me disse.

Foi assim com o Festival Novas Frequências, realizado em dezembro de 2019 no Museu de Arte Moderna / MAM do Rio de Janeiro. Ver https://www.facebook.com/novasfrequencias Minha volta anual `a cidade, no final de outubro, tinha muito a ver com a da minha amiga, 50 anos atrás. Feito ela, cheguei carregada de expectativas negativas em relação ao que encontraria aqui, especialmente na área da cultura. Por isso, foi uma alegria ver os jardins do MAM povoados de jovens durante aquele Festival. Faziam algo muito parecido com o que minha geração realizou durante os Domingos da Criação no ano de 1971. Eventos coletivos, tais domingos tinham como objetivo praticar uma arte “social”, de fundamento utópico, trazendo o museu para o belo espaço aberto do seu entorno. Eram liderados por artistas que ofereciam cursos e oficinas de arte no departamento educativo do MAM, sob a batuta do seu diretor Frederico Morais. Ver https://www.itaucultural.org.br/uma-colecao-poetica-domingos-da-criacao-e-vozes-do-experimental-em-arte-e-educacao

Foram performances cênicas coletivas realizadas com materiais e técnicas das artes visuais (na época chamadas de happenings, ou “acontecimentos”) realizadas no último domingo de cada mês, durante seis meses. Em cada uma, um material de trabalho diferente era oferecido ao público. Assim, houve o domingo do tecido, em janeiro, o do papel; e ainda os da terra, dos fios, do som e do corpo  Seus integrantes eram, ou interagiam com, os frequentadores dos jardins do Aterro, retratados na letra de Gil.

Fotos dos Domingos da Criação: do tecido, na foto 1, em janeiro de 1971; do papel, na foto3, alternam-se com fotos do público presente no vão central do MAM /RJ, no Festival Novas Frequências (1-8 dez. 2019).

Depois dessa primeira boa surpresa, decidi visitar o Museu, programa que antecedia, ou complementava, minhas idas ao Aterro do Flamengo naqueles anos distantes. Constatei que o vigor da arte erudita continua de pé. Agora, permeado por outros saberes, vindos das franjas da arte quase sempre restrita `as universidades e museus. Foi bonito ver a exposição (de alta qualidade) das comunidades do Rio de Janeiro lado a lado com a bela retrospectiva da obra de Vergara, um dos nossos grandes artistas visuais eruditos que, inclusive, foi um dos “animadores” dos Domingos da Criação de 1971. Já na atual mostra do acervo do MAM, lá exposta, a ênfase está posta nas fotos que documentam a transformação da cidade a partir da transferência da capital, do Rio para o centro-oeste do país. As fotos do nascedouro de Brasília, incluídas nessa seleção do acervo, é, além de uma comparação contrastiva entre as duas capitais – uma que perde esse status e outra que nasce para adquiri-lo -, é uma excelente informação visual sobre a História das duas cidades e do Brasil.

Ao sair do interior do perfeito edifício de Affonso Reidy que abriga o museu, mergulhei de cabeça nas Novas Frequências. Era o primeiro dia do Festival e do mês de dezembro e o vão delimitado pelas inclinadas colunas de concreto estava repleto de grupos, produzindo diferentes práticas delas. Apresentações de todos os tipos de experimentações sonoras se misturavam. Computadores conversavam com enormes engrenagens industriais, tonéis de lata e instrumentos de percussão tradicionais. Tudo produzindo um som criativo e inesperado, cuja performance, musical, cênica e plástica, as fotos registram.

(André Damião e Francisco Lemos (BR) sobem a rampa do restaurante do MAM no curso de sua obra Guerra Não Linear (foto1); Tim Shaw (UK), mostra sua criação de múltiplos suportes e linguagens em outro ângulo do mesmo espaço do MAM.

Mas meu objetivo neste dia era o concerto da compositora argentina Beatriz Ferreyra https://beatrizferreyra.odavia.com uma das precursoras da música concreta (cuja versão em poesia conheço, entendo e gosto bastante) e eletrônica.

Mais uma vez, não me decepcionei. O trabalho mostrado por essa artista, merecidamente aplaudido, segundo o material do Festival, é “espacializado em um sistema multicanal com oito grandes alto-falantes. Compõe-se de quatro peças, que giram em torno da astrofísica e dos mistérios da existência, de músicas populares argentinas e brasileiras, de sonhos nos trópicos e, finalmente do “bardo Thodol”, o livro tibetano dos mortos”. O público, gente de todas as idades, etnias e gêneros, que parecia não ser, como eu,  inteiramente capaz de decodificar sua descrição, apreciou e respondeu positivamente aos acordes inusitados que a compositora, de pé diante dele, extraía dos seus computadores. A expressão dos que desciam a rampa da varanda do antigo restaurante do museu, onde o concerto se realizou, trazia a tranquilidade e a paz que resultam da exposição a uma bela experiência estética.

(Beatriz Ferreira mostrando o seu trabalho a seu público, por ela aconselhado a buscar a melhor maneira de disfrutá-lo: caminhando em direção aos alto-falantes (foto 2), ou encontrando uma posição confortável para a recepção (foto3).

Uma semana depois, veio a verdadeira grande surpresa: o espetáculo de encerramento, The Ceremony, no dia 08 de dezembro.  Minha emoção atingiu seu ápice ao ver os artistas performáticos, os percussionistas e os músicos de instrumentos eletrônicos expressar-se atravessando o jardim de pedras roliças em frente ao vão central do MAM, espaço onde se desenrolaram os eventos daqueles distantes Domingos da Criação.

No entanto, ao contrário dos happenings de 1971, estavam ali reunidos artistas braslleiros e estrangeiros, sendo os protagonistas de clara ascendência africana. A performance coletiva The Ceremony foi idealizada pelo Novas Frequências CTM (Berlin) e Maintenant (Rennes), festivais que fazem parte da rede internacional ICAS / International Cities of Advanced Sound (Cidades Internacionais de Som Avançado), com apoio do Goethe Institut, do Instituto Francês e da Caritas.

Responsáveis pela concepção do espetáculo, os artistas Zorka Wollny (polonesa radicada em Berlim) NDOS (francês) e Loic Koutana (também francês, mas há quatro anos radicado em São Paulo, onde, além de trabalhar como modelo, faz parte da banda Teto Preto), se misturavam a outros artistas participantes do Festival e de seu público, convidado a integrar-se na apresentação, A performance elaborou temas como imigração e identidade, através da percussão - eletrônica e tradicional -, da expressão corporal e das intervenções verbais de alguns dos artistas. Poucas vezes vi encenado um retrato tão fiel da humanidade contemporânea. Os aplausos veementes confirmaram o seu acerto.

(Os artistas Zorka Wollny, NDOS, e Loic Koutana, (foto 1), o grupo de artistas, a maioria participantes em outras obras do Festival que participaram da performance (foto 2) e cenas do público integrado na obra performático-visual-musical The Ceremony, nas demais fotos.)

Saí do Aterro com o verso “De tudo fica um pouco”, de Carlos Drummond de Andrade, na cabeça. Dos pioneiros Domingos da Criação ficou mais que pouco. A abertura da arte erudita `a prática dela pelo público mostra, meio século depois, os seus frutos. O diálogo dos nossos artistas com seus companheiros de outros países, que a cepa mais privilegiada (artística e financeiramente) sempre conheceu, me parece, a esta altura, muito mais inclusivo.

Sobretudo, saí com o sentimento de, como brasileira, estar integrada numa cultura viva, e, portanto, que não necessita de nenhum “renascimento”. Seu motor central é a continuidade, estabelecida em poucas, mas robustas instituições, como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Esse sentimento me encheu de esperança e de vontade de agir para que não a destruam.

A força simbólica do MAM esteve ainda presente fora do evento musical. Terminado o concerto de Beatriz Ferreyra, depois de dar-lhe parabéns e conversar um pouco com ela sobre sua música, dirigi-me ao parapeito do terraço. De lá, avistei um ensaio da Orquestra Voadora, cuja filiação aos Domingos de 1971, está registrada num pequeno filme de 2010, Um Domingo no MAM https://vimeo.com/25518852

Do mesmo terraço, avistei ainda, poucos metros ao lado da Voadora, os ensaios do coletivo feminino que reproduziu, em manifestações políticas recentes, a coreografia criada pelas mulheres chilenas em luta contra seus governantes.

No Brasil, a luta dos artistas contra o nosso atual governo tem que ser por impedir a quebra dessa persistente continuidade do trabalho cultural, apesar de todas a adversidades a que ele sempre esteve submetido. Lembremos Hélio Oiticica outro artista que, atuante nos anos 60 e 70, cruzou as fronteiras que dividem a arte erudita do resto do país, estendendo a sua desigualdade social aos artistas: “Da adversidade vivemos!”, foi o lema com que Oiticica, em abril de 1967, terminou o manifesto de apresentação da exposição Nova Objetividade Brasileira, realizada nesse mesmo edifício do MAM / Rio de Janeiro. .Falava em nome dos seus 40 artistas, alguns oriundos do concretismo a que a argentina Beatriz Ferreyra, como vimos, também fez parte; e de neo-concretistas, Ambos grupos iniciando, com aquela exposição, um novo movimento artístico.

Assegurar tal continuidade começa por lutar pela preservação de instituições como o MAM, o MAR, a Fundação Casa de Rui Barbosa e muitas outras. Todas fruto de uma luta incansável da nata de nossos artistas e intelectuais para compartilhar seu conhecimento e sua arte de formação erudita com a população que a eles não tem acesso. Assegurar que esse esforço continue é a tarefa de hoje. A mais urgente.