“Influência do Jazz” e do rocK: revolução, mulher e literatura através do cinema

Já me despedindo de New York por um tempo, faço uma retrospectiva do mais interessante que vi por aqui nos dois últimos meses, quando, ocupada, andei sumida deste espaço.

Por razões mais abaixo declaradas, me decidi pelo cinema. Durante os seis meses em que morei em Paris, entre 1999 e 2000, essa cidade me pareceu a mais cinematográfica de todas. Vi filmes raros, como Casque D’Or (1952), com uma Simone Signoret jovenzinha e linda. Nunca esqueci esse filme, cujo diretor, Jacques Becker, faz das ruínas da cidade no pós-Guerra o cenário de uma famosa história, acontecida em 1902, cujos personagens são uma prostituta e seus dois amantes, líderes de uma “facção” de criminosos, os “Apaches”, ecoando, no nome escolhido por eles, o faroeste americano. O bando, de fato, atemorizou a Paris do princípio do século XX. A cena final, considerada antológica por François Truffault e críticos de cinema, é um libelo contra as execuções por guilhotina, ainda usada na Belle Époque, o tempo da história narrada.

Vinda do meu endereço americano no estado de Connecticut, desconhecia, naquela virada de século, o que New York oferece aos amantes do cinema. Além de salas dedicadas aos filmes estrangeiros, como o Internacional Film Center / IFC, ou a filmes antigos, como o Anthology Film Archives, a cidade conta ainda com instituições estrangeiras que exibem os filmes dos seus países. Um dos meus preferidos é o do Consulate General of the Czeck Republic / Consulado da República Tcheca. No verão, a cobertura do seu belo edifício, o Bohemian National Hall, se transforma numa sala de cinema ao ar livre, com o brinde de uma visão privilegiada de New York entre o pôr do sol e a chegada da noite. No momento, os tchecos preparam a celebração dos 30 anos da Velvet Revolution / Revolução de Veludo (17 de novembro de 1989). Nomeada em homenagem ao grupo de rock americano Velvet Underground, sua festa deste ano já começou, aqui em New York, com um documentário sobre a Velvet Revolutiion na… Armênia! Também já houve um show do grupo Garage. Seus músicos, 30 anos mais velhos, são os mesmos que levaram multidões `as ruas de Praga em 1989, segundo a descrição do evento na website do BNH. Ou seja, uma das maiores originalidades da Velvet Revolution foi ter sido feita sob a “influência” de um dos grupos mais transgressores do rock americano. A festa oficial, que já tem sua programação anunciada, relembrará, também, os 80 anos da execução (em 1939) de líderes estudantis e um de seus professores pelas forças nazistas que ocuparam o país.

Lou Reed, líder do grupo Velvet Underground e Vaclav Havel, nos anos 80. Este último, dramaturgo, poeta e ensaísta, líder da Revolução de Veludo, e presidente da República depois dela, contrabandeou o disco do grupo que exibe na foto (The Velevt Underground and Nico) e o divulgou no seu país, ainda sob o regime comunista. A amizade entre os dois artistas persistiu ao longo de suss vidas.

Faz um mês, na FIAF – France Institute / Alliance Française of New York, o Fall / outono, estação dos grandes lançamentos culturais de New York, abriu-se com o festival Magnetic Gaze: Isabelle Adjani on Screen / Contemplação Magnética: Isabelle Adjani na Tela. Selecionei do programa The Quartet / O Quarteto (1981). Nele, Adjani, quase menina ainda, interpreta uma jovem imigrada do Caribe – uma créole -, vivendo em Paris durante a mesma belle époque (já anos 20, no caso) do filme Casque D’or. Casada com um jovem polonês, preso por contrabando de antiguidades, sua personagem, sem dinheiro nem trabalho, fica`a mercê das excentricidades sexuais de um casal de socialites ingleses, interpretados por Maggie Smith e Alan Bates, além de outros homens. A história foi criada por Jean Rhyz no livro de mesmo título, que inspirou o diretor americano James Ivory a filmá-la. Como o fez com Howard’s End, romance homônimo do autor inglês E.M. Foster, cujo enredo recriou em imagens igualmente belas e luxuosas. Ivory, na sessão de perguntas e respostas aos espectadores, disse que, no livro, o sofrimento da personagem é ainda maior. Assim respondeu a uma senhora, surpresa com a quantidade de papéis aviltantes oferecidos `a uma atriz tão bonita como Isabelle Adjani.

Dois enfoques cinematográficos masculinos na Paris da Belle Époque, com 30 anos de diferença, Duas belas e competentes atrizes os interpretam. Adiante, duas das minhas versões (ficcional e acadêmica) do feminino.

Lembrei-me de um artigo acadêmico que escrevi faz tempo, comparando Nísia Floresta e Flora Tristán, cujo livro “Pérégrinations d’une Paria / Peregrinações de uma Pária”, relata a dificuldade de uma mulher no século XIX francês, caso não tivesse um marido (1). Flora teve um, gráfico, a quem ajudou profissionalmente por algum tempo, também publicando na gráfica familiar seus textos militantes, os quais, especula-se, foram uma das fontes de Karl Marx. Belíssima filha de uma francesa e de um oficial peruano chamado a lutar na França em defesa do Império Espanhol a que o Peru pertencia, Flora, cansada da vida de casada, pede o divórcio. Deixando para trás os filhos, decide ir ao Peru reclamar a herança do pai, morto na guerra que o convocara, oriundo de uma família de alta estirpe daquele país. Depois de muita luta, conseguiu, com auxílio de um dos seus tios peruanos, ter sua demanda contemplada, podendo, com isso, viver independente até o fim da sua curta vida (morreu de tifo, aos 44 anos).  Sua filha Aline casa-se com Clovis Gaughin, que morre a caminho do Peru, para onde o casal se dirigia, acompanhado dos filhos, dentre os quais se incluía o futuro pintor Paul Gaughin. Mais uma vez, uma Tristán ia em busca do auxílio da rica família peruana. Por conta da morte do pai, Gaughin viveu no Peru parte de sua infância. Esse país e Flora Tristán, sua avó, a quem muito admirava, foram uma referência constante na vida e na obra do pintor. A garra da trajetória de Tristán e da filha, que também viveu sob a tutela de George Sand, amiga de Flora Tristán, mostram sua excepcionalidade na história das mulheres. Poucas tiveram a sorte de encontrar um movimento social e uma atmosfera cultural capaz de fazer brilhar a inteligência que lhes coube. Ainda hoje, muitas atrizes reclamam dos papéis decorativos que recebem na indústria do cinema.

Mas o filme que mais me interessou nestes últimos meses, foi The Birth of the Cool / O Nascimento do [jazz] Cool, uma “autobiografia” do trompetista americano Miles Davis. Stanley Nelson, seu diretor, aproveita uma entrevista de muitas horas, feita por ele com o músico, para realizar o documentário em primeira pessoa. Ao público que lotou uma das salas do recém reformado Film Forum, legendária instituição cinematográfica de New York, o diretor explicou ter contratado um ator para imitar a voz rascante de Miles Davis, adquirida na juventude, depois de uma operação de garganta mal curada por sua negligência em seguir as instruções pós-operatórias dos médicos. “Não se podia aproveitar a gravação, cheia de ruídos externos”, explicou. O melhor do filme é a música de Miles Davis, mostrada em clipes de suas gravações. Amei ver, filmada, a improvisação musical de Davis que compõe a trilha sonora do filme L’ascenseur pour l’echaffaud / Ascensor para o Cadafalso” (1958), de Louis Malle, que considero uma das melhores obras cinematográficas de todos os tempos.

Como fui ver The Birth of the Cool motivada por um conto meu, A Influência do Jazz, onde a figura de Miles Davis aparece como parte do repertório cultural machista que circundava as mulheres anos 50 / 60 do século XX no Brasil, gostei de ver na tela as mulheres com quem o músico compartilhou a tormentosa vida que escolheu. Confirmei ser ele o artista certo para a alegoria daquela atmosfera, na curta narrativa que considero ser a mais “feminista” que já escrevi.

Segue o conto, em português tal como publicado no livro Os ossos da esperança (1994) e, em seguida, na sua tradução ao inglês, The Influence of Jazz, assinada por Treb Winegar, tal como publicada na revista americana The Dirty Goat, número 12 (2002). Em nota, deixo, ao final, o link para o meu artigo acadêmico. No seu original (em espanhol) sobre Flora Tristán e Nísia Floresta.

INFLUÊNCIA DO JAZZ

Lidia Santos

Só agora, depois da morte de Miles Davis, tinha certeza de que ele não tivera essa importância toda na sua vida. Até bem pouco tempo não podia ouvir o som cortante do trompete de Miles sem estremecer. “Diga, querida, quem está tocando o trompete?", a frase vinha imediatamente à sua cabeça. Antes que ela respondesse, ele dizia: “Miles Davis, é lógico." Era o mesmo com Charles Mingus, com Coltrane, com Gillespie, que também acabara de morrer, embora Miles fosse o preferido. Ele se dispusera a ensinar-lhe tudo, e a intensidade do aprendizado acompanhou durante bom tempo as experiências futuras: nada seria igual, ela se afirmava todos os dias e nada mais parece ter-se passado em sua vida nesse curto período. 

- Quem está tocando o trompete?, Miles Davis, my dear - antes que respondesse. Tinha sido assim desde o princípio, ele dizia que era preciso ouvir e ela não fizera outra coisa enquanto tudo durou. “Com quantos compassos se faz um blue?” “Doze”, ela já sabia repetir. Estava agora diante do espelho, esculpindo o rosto em traços de blush. Pensava que o tempo não tinha sido tão implacável, enquanto Billie Holliday cantava When a Woman Loves a Man. Ela sempre preferindo o canto das mulheres, identificação, ele afirmava. Bessie, Billie as grandes rainhas solitárias, durante muito tempo não pôde ouvir Miles Davis. 

Lembrava-se do traço espesso de delineador que se usava naquela época, a arte da maquiagem se desenvolvera muito desde então. O jazz, esse sobreviveu no culto do pequeno círculo que ela nunca mais vira. Hoje os tons são mais suaves e os traços se esfumam num colorido natural. Os azuis e os líquidos verdes, para os dias alegres, indianos negros e púrpuras para as noites trágicas, que ultimamente não havia mais. Maquiar-se permaneceu uma forma de render-se homenagem; se estava triste, era lá, diante do espelho, tendo à frente seu arsenal de pincéis, tinturas, pastas e pós dourados, que tudo se resolvia. 

No princípio era o enfeitiçado trajeto que vai do delta do Mississipi à cidade de Nova York. Gostava de acompanhá-lo nas reuniões dos amigos, em que a falação dele tinha evidente prestígio. Era cômodo, não precisava dizer nada, a música encantadora, ela, a princesa mimada que merecia um afago a cada tirada brilhante. Miudinha naquela ocasião, achegava mais o corpo ao dele e era feliz. Recordava o espanto em seu rosto quando dissera numa dessas reuniões: “Miles Davis é um homem bonito", e como demorara a responder, os olhos fixos nos dela: “Faz sucesso com as mulheres." 

O segundo compasso foi diminuir o tom da voz, porque ele não gostava que o interrompessem enquanto, noite adentro, durassem na vitrola as jam-sessions. Um dia lhe disseram que precisava ir a um médico, ninguém conseguia mais ouvir suas frases, os colegas do trabalho pedindo sempre que ela as repetisse. 

-Quem está tocando o trompete?- Miles Davis - ela respondeu do lado de dentro. — Muito bem, ouviu a voz dele do outro lado da porta. Foi nesse compasso que desenvolveu a arte da maquiagem, talvez para disfarçar as olheiras surgidas com as noites em claro regadas a uísque. Retirava-se para o espelho e, enquanto os solos do Bird entravam por todas as frestas, ela estava diante de si mesma, metamorfoseando-se.

 A transformação foi lenta, mas segura. Um dia, o rosto marcado pela maquiagem pesada, chegou ao apartamento e ele não estava. Sumiu três dias seguidos, ela mudando a pintura a cada três horas, aprendera sozinha muito jazz, ouvindo toda a coleção. Alguma coisa começou a se partir, talvez o espelho, talvez o acetato dos discos, em que, sem a presença dele, percebera pequenos chiados. Ela se vendeu por trinta desculpas, mas a fissura tinha-se instalado. Na segunda ausência, trancou-se no quarto e cortou-lhe à tesoura a roupa prestável, deixando-o com a roupa do corpo. Ele soube, mais uma vez, convencê-la da necessidade da sua presença, mas ela notou-lhe uma ruga no pescoço. A minissaia instalava seu reinado, e os amigos da rua, que ela voltara a procurar, ouviam rock-and-roll. Da terceira vez foi encontrá-los e esqueceu por dias a frase, até que a volta da fechadura surpreendeu o trompete de Miles Davis: “Quem está tocando o trompete?" Ela atravessou a sala e esvaziou o armário de uma só vez, encheu uma mala grande com a própria roupa e nunca mais o viu, porque ele também nem se deu ao trabalho de procurar por ela. 

A notícia veio quase ao mesmo tempo que a da morte de Miles Davis, ele deve ter morrido feliz. A amiga dos velhos tempos fez questão de contar, dentre outras tristezas. Sentiu uma dor funda, que nem de longe trazia de volta a emoção daqueles dias. Além daquele amor, veio junto a lembrança da construção de uma nova capital, da nova arquitetura, da poesia sintonizada com aqueles dias. Pensava isso enquanto Alberta Hunter cantava um país em francês, tinha posto as mulheres a cantar depois de receber a notícia. Fora imediatamente para o espelho, preparava-se para o encontro de hoje à noite, um homem novo em sua vida, promessa de amor mais uma vez renovada.

(in Os Ossos da Esperança, 1994, pp. 83-87)

— Lidia Santos —

The Influence of Jazz

 

            Only now, after the death of Miles Davis, was she certain that he hadn’t been all that important to her life.  Until just a little while ago, she couldn’t hear the piercing sound of Miles’ trumpet without trembling.  “Tell me, dear, who is playing the trumpet?” the phrase came immediately to her mind.  Before she could answer, he would say: “Miles Davis, of course.”  It was the same thing with Charles Mingus, with Coltrane, with Gillespie, who had also just died, even though Miles was the favorite.  He had taken it upon himself to teach her everything, and the intensity of the apprenticeship [accompanied for a long time the future experiences: nothing would be the same, she would tell herself every day and nothing else seemed to have happened in her life during that short time.

            - Who is playing the trumpet?, - Miles Davis my dear – before she could answer.  It had been that way since the beginning.  He would say that she needed to listen and she hadn’t done anything else while it lasted.  “How many bars are in the blues?”  “Twelve”, she had learned to repeat.  She was in front of the mirror now, sculpting her face with touches of blush.  She was thinking that time had not been so implacable while Billie Holliday sang “When a Woman Loves a Man”.  She always preferred the female singers, because she could identify with them, he would assert.  Bessie, Billie, the great solitary queens, for a long time she couldn’t listen to Miles Davis.

            She remembered the thick stroke of eyeliner that she used at the time.  Her art with makeup had greatly developed since then.  Jazz survived in the worship of the small circle that she had no longer seen.  Today the tones are softer and the strokes are shaded with a more natural coloring.  The blues and the liquid greens for the joyful days, the Indian blacks and purples for the tragic nights, of which lately there had been none.  The makeover remained her way of rendering herself homage; if she was sad, it was there in front of the mirror, having before her her arsenal of brushes, paints, shades, and gold powders, that everything was resolved.

            In the beginning, it was that bewitched route from the Mississippi Delta to New York City.  She liked to escort him to meetings with his friends in which his conversation was evidently prestigious.  It was nice, she didn’t have to say anything, the music was enchanting and she, the spoiled little princess who received a caress for every one of his brilliant witticism.  Feeling small on that occasion, she drew her body closer to his and was happy.  She remembered the shock on his face when, in one of those meetings, she had said: “Miles Davis is a handsome man,” and how long he had taken to answer, his eyes fixed on hers: “He is good with the women.”

            The second measure was to quiet her voice down, because he didn’t like anyone to interrupt him at night during the “jam-sessions” on the record player.  One day someone told her that she needed to go see a doctor, because no one could hear her anymore, her co-workers were always asking her to repeat everything.

            - Who is playing the trumpet? – Miles Davis – she answered from inside.  Very good – she heard his voice through the door.  It was doing that that she developed the art of the makeover, maybe it was to disguise the dark circles under her eyes that would appear after the whisky-filled all-nighters.  She would retire to her mirror and while the solos of “Bird” wafted in through the vents, she would stand before herself, metamorphosing.

            The transformation was slow, but sure.  One day, with a heavily made-up face, she arrived in the apartment. He was not there.  He disappeared for three days, and she, while changing her makeup every three hours, learned a lot of jazz alone, listening to the whole collection.  Something began to crack, perhaps it was the mirror, perhaps it was the acetate on the records, on which, without his presence, she had begun to perceive small scratches.  She sold herself for thirty excuses, but the fissure remained.  During his second absence she locked herself in his room and, with a pair of scissors, cut up all of his good clothes, leaving him with only the clothes he had on.  He was able to convince her one more time that her presence was necessary to him, but she realized he had a wrinkle on his neck.

            The miniskirt was beginning its reign and her old friends that she had hunted up again, were listening to rock-and-roll.  The third time she went to find them and for days forgot the phrase, until the turning of the lock interrupted Miles Davis’ trumpet: “Who is playing the trumpet?”  She crossed the room and emptied out the chest of drawers at once.  She filled a large suitcase with her own clothes and never saw him again, because he didn’t even go to the trouble of trying to find her.

            The news came at almost the same time as that of Miles Davis’ death – he must have died happy.  A girlfriend of hers from the old days made sure to tell her, amongst other sad news.  She felt a deep ache, that brought back from far away, the emotion of those days.  Besides that love affair, came the memory of the new capital’s construction, the new architecture, the poetry that went with those times.  She thought about all that while Alberta Hunter sang a country in French. She had had the women sing after receiving the news.  She had gone immediately to the mirror, and was preparing herself for that night’s date, a new man in her life, the promise of love renewed once more.

__ Translated from the Portuguese by Treb Winegar

The Dirty Goat, 2002, number 12. pp. 42-43.

(1) http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v07/santos.html