Os Ossos da Esperança

Acabo de saber que “a última semana de agosto é mundialmente dedicada às vítimas de desaparecimento forçado.” Chico Buarque, a partir dessa notícia, abraçou a participação brasileira nessa campanha sugerindo encher de flores os monumentos dedicados aos desaparecidos políticos no Brasil. Como não estou no país, faço tal doação na forma de um conto meu, construído em torno dos desaparecidos políticos e de suas famílias. Por ele, fui agraciada com o Primeiro Lugar na primeira edição do Prêmio Guimarães Rosa, da Rádio France Internationale / RFI, para contistas latino-americanos de língua portuguesa. Recebi ainda, na Alemanha, onde estive participando da Feira de Frankfurt dedicada ao Brasil, em 1994, sua tradução em várias línguas tal como impressa pela Anistia Internacional nas suas publicações daquele ano. Por tudo isso, seu título nomeou o meu segundo livro de contos, já citado no post anterior deste blog.

Segue o conto:

Os ossos da esperança

Por sorte, ou azar, quem sabe, continuei tendo filhos. Oito no total, com ele nove. Quando a moça bateu palmas lá no portão, eu refletia sobre as criaturas que pusera no mundo. Era cedo ainda, e eu catava o feijão. Separando os grãos, me perguntava se as pessoas não se figuravam da mesma forma: sempre no meio de uma ninhada de filhos, tem aquele que nasce um pouco torto. Não tortura de corpo, porque nem sempre se percebe com a vista, mas aquele dom de sofrer mais que os outros, por ser teimoso ou insatisfeito demais. Esse meu filho, de quem a moça do portão veio falar, tinha sido desse jeito. Desde cedo mostrara seu lado pontiagudo no trato com as pessoas. Foi assim na briga do irmão mais velho, acho que ele próprio tinha sete anos, o irmão apanhou, porque era magrinho e triste, como até hoje. Ele foi à luta e enfrentou os outros três, já marmanjos, no pau. Chegou lanhado, mas dizem que durante a briga não parava de berrar a covardia dos três grandes contra um pequeno. Ainda criança, várias vezes agiu da mesma forma, defendendo tudo que achava justo. Soube sempre falar muito bem, e logo tornou-se a voz da casa. Rapazinho, enfrentava os senhorios, negociava a conta da padaria, de costume atrasada. E sozinho decidiu continuar na escola, quando os outros saíam. Lembro o dia em que veio com um papel pra eu assinar, ainda de calça curta: era a Inscrição na prova para o ginásio público do bairro, explicou. 

Graças a ele, outros irmãos seguiram também o caminho. Mas nenhum gastava tanto tempo estudando. Da cama, antes de pregar os olhos, eu enxergava a permanência de luz na cozinha, pois era na mesa da cozinha, não havendo outro espaço, que ele escrevia. Aos quinze anos arranjou um emprego, mas continuava num curso noturno. 

Então começaram aquelas reuniões. Não sei como agüentava, nos fins-de-semana era reunião o dia quase todo, ou noite adentro. Vinha de longe, às vezes perdia o último trem e chegava de manhã. A rebeldia manifestada desde menino tomara corpo com ele: não era mais o forte colega da escola que não devia tripudiar sobre ninguém, nem o açougueiro exacerbar na cobrança do preço da carne. Agora estavam entre a gente rica os responsáveis pela nossa miséria. Então eu soube que corria perigo. Mas ele já se afastava, as reuniões mais e mais o tiravam de casa, até que disse ter de morar perto da faculdade: queria ser advogado. Eu sabia ser a tal luta contra os ricos que ia levando ele embora, daí meu coração ter reduzido um pouco o tamanho. Aquele filho me fazia muita falta dentro de casa. Ele era o grão torcido, o único a espessar a casca com a injustiça da nossa pobreza. Outros filhos criei pro mundo, mas aquele, que até há pouco tempo pensava ser o único dos meus filhos doado a essa terra sedenta do sangue da gente moça, aquele filho era, naquela época, meu orgulho e meu amparo. O marido se entregara à tristeza, e as outras crias não tinham, feito ele, o dom de trazer o futuro, todos os dias, pro interior das nossas paredes. 

No início, vinha pro almoço de domingo. Deixou endereço e sempre trazia um dinheirinho. Até uma namorada bonita veio com ele uma vez, e fiquei feliz em sabê-lo amado por pessoa de pele tão lisa e clara. Mas logo desconhecíamos onde andava, até aparecer escabriado, olhando em volta como foragido. Me disse não ter mais endereço fixo e usou uma palavra que nunca esqueci: era um clandestino. Vivi um inferno. Caçavam ele e os companheiros por todos os lados, uma polícia feia e mal-encarada como todas as outras um dia invadiu nossa casa à sua procura. A seguir veio a romaria `as prisões, às delegacias e aos hospitais, depois de um amigo dele, também escorraçado, ter trazido o aviso: tinha caído nas mãos dos soldados. Anos e anos de busca vã deram cabo da saúde do pai, morto após o nascimento do nosso caçula, ao certificar-se do que ele era agora: um desaparecido. 

Tanto tempo passado e vem essa moça com a descoberta de uns ossos debaixo da terra que podem ser os dele. Deu a notícia de forma tão delicada quanto os modos daquela única namorada deste filho, clandestino e desaparecido, que cheguei a conhecer. Disse ter custado a me localizar, de todas as mães tinha o endereço, menos o meu, que mudara sem comunicação. Fiquei olhando pra ela muito tempo e não disse palavra. Prometi ir ao endereço indicado e afirmei querer enterrar, sim, os tais ossos. Ela nem precisava dizer: ele era, finalmente, um morto. 

A moça saiu, e me vi com o feijão pelo meio catado, a casa em silêncio porque todos trabalham e os netos estão na escola. Uma única lágrima teimou em rolar sozinha, embora devessem ser pelo menos duas. Tive tanta raiva que varejei os grãos restantes na tigela pela porta da cozinha. Não pude dizer nada. A dor é ainda muito recente. Não pude contar sobre o meu caçula, que como os outros saía pra trabalhar, que com os amigos do bairro ia dançar nos fins de semana, desse que em nada diferia da sua gente, tendo sido sempre um grãozinho absolutamente igual a todos os outros. Não pude explicar ter por isso deixado tudo para trás e até esquecido um pouco o primeiro, perda tão distante. Não pude esclarecer ter perdido este último filho também nas mãos da polícia, com a única diferença de que, se o outro tinha sido antes clandestino e desaparecido, este não passou de ser, desde o princípio, apenas um morto. E pior, porque sem a raiva grossa que levou o irmão pra morte, sem idéia que a justificasse. Largaram o corpo numa vala imunda, o dele e o dos amigos, todos recém-saídos do baile.. 

Porque continuei tendo filhos, mesmo depois de ter perdido o primeiro, por isso me castigaram? Porque continuei morando no mesmo lugar, assistindo a guerra assomar nossas casas sem nada poder fazer, sempre me repito. Então decidimos, eu e a filha largada do marido, que mora comigo, passar a mão nos pirralhos dela e sumir depressa. Talvez em busca do lugar de que falava aquele filho, clandestino, desaparecido e morto, onde tudo seria diferente. Talvez em busca do brilho de sua esperança, embora pressinta, na dor de outras tantas mães que inutilmente perdem seus filhos, o cheiro do seu rescaldo.

Sugestões de locais para a colocação de flores:

– São Paulo, Parque do Ibirapuera, monumento aos mortos e desaparecidos políticos, em frente ao portão 10;
– Recife, rua da Aurora, Praça Padre Henrique; monumento Tortura Nunca Mais;
– Salvador; Praça do Campo da Pólvora, monumento contra a tortura;
– Rio de Janeiro, Praça XV, estátua de Tiradentes; ou na Praça Pio X, Igreja da Candelária.

Informações sobre a campanha e suas fotos, ver Jornal GGN https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/chico-abraca-a-campanha-flores-pelas-vitimas-de-desaparecimento-forcado/