Lembrança de Getúlio


Uma amiga me recordou que hoje, dia 5 de agosto de 2019, faz 64 anos da morte de Carmen Miranda. Em sua homenagem, decidi, em lugar de um texto novo, publicar hoje, aqui no blog, um antigo conto meu, intitulado “Lembrança de Getúlio”, incluído no livro Os ossos da esperança, publicado em 1994 e hoje esgotado. Começo com uma foto do sorriso largo e bem brasileiro dessa portuguesa que adotou o Brasil, pra espantar a tristeza contida nessa curta narrativa que, espero, ajude a refletir melhor sobre a tristeza de hoje.

Foto de Carmem Miranda sorrindo.png

Segue o conto:

LEMBRANÇA DE GETÚLIO


No dia em que enterraram Carmen Miranda, ela, depois de ter passado toda a manhã na fila do velório, havia seguido pela Cinelândia até à Praça Paris. De lá alcançara a amurada da avenida Beira-Mar e estivera muitas horas olhando a baía. Assim contara à Isaura, de quem era mais íntima. Nós somente a vimos passar quando saiu de casa, bem antes do meio-dia. Trajava-se de acordo, a roupa escura, Luzia lembrava ser um vestido cinza-chumbo, a mim me parece que seria um costume azul-marinho, mas a Vanda jura que ela, naquela manhã, usava uma negra saia justa que costumava levar nossos homens à loucura. 

Concordamos quanto ao tom fechado do tecido ressaltar-lhe a pele clara e os fartos cabelos castanhos. Lembramos também de como voltara apressada no fim da tarde. Isaura, vizinha contígua, refaz, ainda hoje, aquela rotina: tinha de estar em casa pelo menos uma hora antes de que o marido chegasse, pra dar tempo de limpar os sapatos e recolocá-los no lugar. Uma pessoa não pode suportar essa agonia, ainda reafirma a Isaura, tantos anos passados. Eram vizinhas de parede e meia, podia saber melhor do que nós. Eu, Luzia e Vanda apenas presenciávamos as suas saídas freqüentes na parte da tarde. Cruzando o portão, cumprimentava-nos com um sorriso ou trocava algumas palavras, enquanto invejávamos nela o corpo esbelto e a maciez da pele, diminuídos quando passava aos sábados, de braços com o marido, os olhos baixos.

Com Isaura se abria: tinha um fogo que a queimava por dentro, uma dor que extrapolava os limites da própria casa. Por isso precisava sair, andar pelas ruas. Caminhava tanto que os pés lhe doíam, as pernas trêmulas. Se lhe indagavam a causa de tal aflição, calada perdia os olhos num vazio de dar medo. Havia também outros pontos de vista. O irmão solteiro da Isaura, agregado há poucos meses à casa da família, dava a entender, segundo nossa amiga, que havia qualquer coisa entre os dois. Sabe como é, macho jovem e livre, ela quase da mesma idade, o marido bem se via ser muito mais velho. Eu tenho pra mim que os homens sempre acham que as mulheres estão querendo e que garoto novo gosta de se exibir. Como se tinham conhecido? Através do muro. Naquele tempo pouca gente tinha geladeira, e o marido da Isaura, que era muito zeloso e parecia ganhar bem, havia comprado uma. Ela, que morava do lado, volta e meia pedia pra guardar coisas na geladeira da Isaura: um pedaço de carne, a fruta fresquinha. Tudo passado pelo alto do muro, onde o rapaz avistara a umidade dos olhos dela. (Não posso negar: minha avó sempre disse que mulher sem-vergonha tem os olhos molhados.) O irmão da Isaura, desde esse dia, ficou obcecado. E a obsessão é a mãe da fantasia. 

Isaura contava também que o marido era muito ciumento. Revistava o armário, cheirava-lhe a roupa. Passou a chegar mais cedo pra ter tempo de apagar os vestígios. Sabia disso pelas próprias palavras dela, porque a casa era muito silenciosa. Mal se ouviam vozes por lá. O único ruído era, como em todas as casas, o do rádio ligado. Pouco tempo antes de tudo acontecer, ela dissera que o marido, acedendo finalmente aos seus pedidos, havia comprado uma vitrola. Agora poderia ouvir Carmen Miranda quando quisesse. E Chico Alves, que embora morto dava gosto escutar. Talvez nem precisasse mais ir aos programas de auditório da Rádio Nacional, uma de suas ocupações vespertinas. Disso tínhamos certeza, porque algumas vezes Isaura e a filha iam com ela. Eu mesma fui uma vez, que nunca esqueci. A alegria de ver Chico Alves cantando, Deus do céu! Nunca me conformei com sua trágica morte. 

Foi num domingo. Isaura conta que a família se preparava pra almoçar, a mesa já estava posta, quando o rosto do marido de Doralice apareceu por cima do muro: “Dona Isaura, a senhora pode vir até aqui? Precisamos de ajuda." A frase confirmava a percepção de um estranho movimento na casa vizinha, alguém batendo insistentemente numa porta fechada. Quando vi a Isaura passar com aquele jeito descomposto, corri a contar pra Luzia e pra Vanda. Nos postamos detrás do muro. Dava pra ouvir muita coisa. 

Mais clara era a voz de Isaura aconselhando a ela pensar melhor, isso não se fazia. Lembrasse do futuro, do desejado filho. Em seguida, o marido dizia precisar dela e corroborava: não fizesse isso. Ouvimos um barulho líquido e um silêncio. Isaura voltara a argumentar, a voz pausada e tensa, o marido não falava mais nada. Um ruído seco soou duas vezes, e percebemos ser o atrito da cabeça de um fósforo na lixa da caixa. Duas vezes. Isaura repetia: “Por favor, Doralice, não faça isso!" Tudo ficou em silêncio por um minuto. Em nova investida, o marido afirmou não viver sem ela, pensasse na família e no que haviam combinado pra reformular a vida. A vitrola, tinha esquecido? Podia ouvir os cantores queridos, era um começo. Isaura relembraria depois que, pela manhã, quando pedira pra guardar coisas na geladeira, Doralice tinha os olhos vermelhos. Recordo de a Isaura ter recomeçado a falar e tenho nítido na lembrança o canto de um bem-te-vi na mangueira do quintal mais próximo. Um tranco da Vanda me despertou: “Três vezes agora!” Só ouvi o último riscar do fósforo e a volta da chave na fechadura, porque a explosão do fogão irrompendo na sala logo atravessou o muro. Isaura gritou por um cobertor pra abafar o incêndio, e a voz de Doralice implorava que não deixassem queimar-lhe os cabelos. 

Luzia, que já morreu, ao narrar essa história afirmava que, na hora da ocorrência, Carmen Miranda cantava “Camisa Listrada" num rádio distante. Vanda jura que, por estranho que pareça, a vitrola da casa estava ligada e Chico Alves, naquele momento, dava adeus à Serra da Boa Esperança. O meu fraco sempre foi a memória, que anda piorando com a idade, de modo que não há jeito de lembrar. Por isso prefiro crer na Isaura, que, tendo presenciado diretamente os fatos, menos se há de enganar. Segundo ela, o marido, numa última tentativa, havia recolocado o disco que soara na casa antes de ter início aquela estúpida brincadeira, e, de verdade, no instante em que o bólido de fogo invadiu a sala pequenina, Carmen Miranda denunciava: "Disseram que voltei americanizada..." 

Só consigo ter certeza da morte de Getúlio Vargas. Quando tudo aconteceu, fazia pouco mais de um ano que também ele se havia matado com um tiro de revólver. Decretaram feriado, e todos nós, inclusive Doralice e nossos maridos, tínhamos chorado muito.