Margot e Juscelino: Um Pas-de Deux Bossa-Nova

Fui ver "Nureyev", documentário composto pela biografia do bailarino russo, ou tártaro, como ele ressalta em entrevistas nele incluídas. A crítica não gostou muito do resultado. Eu sim. Não tanto pelo filme em si, mas pela retrospectiva da época da Guerra Fria e de outros eventos históricos, na antiga União Soviética e fora dela. Como fui ao cinema interessada nesses temas, “Nureyev” me satisfez. Fora algumas citações beirando o kitsch e um excesso de apego `a cronologia da vida do biografado, agradeci cada minuto da beleza do bailarino e da genialidade de suas performances. Não sendo fã ardorosa do ballet nem acompanhando seus astros, o filme foi ainda uma oportunidade e tanto para conhecê-los melhor. (1)

 O documentário me presenteou, finalmente, a narrativa do encontro, em 1961, de Nureyev com Margot Fonteyn, quem, a partir de então, apesar de ser 19 anos mais velha do que o bailarino “russo”, fez dele seu partner. Parceria que lhes valeu fama universal, mesmo depois de passados os 18 anos que ela durou. `A menção do nome de Fonteyn e ao vê-la dançando, acendeu-se uma luzinha na minha memória. Lembrei-me dos comentários sobre suas raízes brasileiras. Fui pesquisar.

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Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev

Luis Nassif, num obituário de Jacinto de Thormes / Maneco Muller, começa, com a “brasilidade” de Margot Fonteyn, a relação das muitas “lendas cariocas” desconstruídas pelo colunista social que acabava de morrer: “Como o caso de Margot Fonteyn, das maiores bailarinas do século, nascida em 1911, morta em 1991. Nos anos 40, a maior fortuna do Rio era a de Ernesto Fontes, dono de indústria têxtil no Brasil e em Londres. Quando veio para cá [para o Brasil], deixou um irmão tomando conta dos negócios em Londres. O irmão foi o verdadeiro pai de Margot, o nome ausente em sua certidão de nascimento, que só mencionava a mãe.” (2)

 Cruzando essa informação com o primeiro capítulo da biografia de Margot Fonteyn escrita por Meredith Deneman (3), descubro que o Maneco não era tão bem informado assim. Em primeiro lugar, ela era neta do brasileiro Antonio Gonçalves Fontes, irmão, sim, de Ernesto. Mas não sua filha. E a verdadeira data de seu nascimento também põe em dúvida se a indústria dessa família seria ainda tão poderosa nos naos 40. Margot Fonteyn nasceu, segundo sua biógrafa, em 1919. Essa descoberta agrega um objetivo mais deste post: prestar homenagear aos 100 anos do nascimento daquela que foi um símbolo da dança clássica do século XX. Deneman relata detalhes não muito edificantes sobre esse avô brasileiro de Margot Fonteyn. Deixo a referência em nota, abaixo, para que os curiosos possam conhecê-la. Só digo que a morte da irlandesa Evelyn Acheson, avó de Margot, vítima, aos 29 anos, de uma cirrose, deixa órfã Hilda Acheson Fontes, filha de sua relação fortuita com o empresário brasileiro. Ainda segundo Deneman, o pai a visita, ainda menina, trazendo de presente uma boneca muito bonita. Ocasião em que outro comportamento duvidoso de Antonio Fontes faz a filha afastar-se dele no ato mesmo desse primeiro encontro.

 A biógrafa americana, tal como eu, não se interessou mais por Antonio Fontes neste primeiro capítulo de sua biografia de Margot Fonteyn.. Vai direto `a superação, pelo casamento, dos problemas de Hilda Acheson Fontes como órfã de mãe solteira na época vitoriana, criada de favor por parentes distantes. O noivo, Felix Hookham, era um estudante de engenharia mecânica, carreira técnica oferecida pela universidade de Manchester, localizada na cidade do mesmo nome, onde eram vizinhos. Já formado e capaz de dar `a família uma vida condizente com sua origem cockney e sua correspondente classe social em Londres, percebeu na menina nascida desse matrimônio um talento inato para o movimento gracioso do corpo. Ambos – pai e mãe -  a encaminharam`as aulas de dança, onde imediatamente confirmou-se certeira a observação dos pais.

Pode ser que alguma relação com os ancestrais brasileiros se tenha mantido. Pelo menos é o que transparece na decisão da bailarina, muito jovem ainda, de mudar o seu nome, uma das alternativas de metamorfosear-se de cockney em gente “fina”. Assim, Margaret, seu primeiro nome, a essa altura transformado no apelido “Peggy” tornou-se Margot (afrancesado, mais de acordo com o ballet). Já o sobrenome, claramente percebido, na sociedade inglesa, como sinal de origem bem distanciada da aristocracia, público que ocupava os camarotes dos teatros onde a jovem estava pronta a apresentar-se, foi retomado do avô brasileiro, depois de devidamente adaptado `a sonoridade e `a grafia da língua inglesa: Fonte [s]-yn.” A resenhadora da biografia da bailarina escrita por Deneman no The Guardian, citando outra parte do livro, conta como o irmão de Margot, impressionado com a riqueza dos seus ancestrais brasileiros (depois de visitá-los, talvez), adota, daí em diante, o mesmo sobrenome. Embora essa informação não se confirme nos arquivos da biblioteca da Universidade de Bristol, como mostra a legenda da foto abaixo.

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Peggy Hookham (Margot Fonteyn) with a friend, Tientsin

University of Bristol - Historical Photographs of China reference :number Hh-s010. Peggy Hookham (later Margot Fonteyn, 1919-1991) is on the right. Ano Estimado: 1930. Arquivo de seu irmão, Felix Hookham.

Aonde me leva tudo isso, você deve estar-se perguntando. `A Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil de 1956 a 1961, meu caro Watson leitor, como diria Sherlock Holmes, se de uma história sobre ingleses se trata.

 Porque a vida de La Fonteyn seguiu, como num conto de fadas e de bailarinas, com muito sucesso e melodrama. Depois de relações frustradas com homens do seu métier (colegas e professores), Margot reencontra, como sua mãe, um estudante com quem se casa anos depois, em 1955. Só que este era aluno de Cambridge, que ela conhecera ao aí apresentar-se como bailarina, em 1937. Chamava-se Roberto “Tito” Arias e descendia de uma família oligárquica do Panamá, que já dera e esse país centro-americano três presidentes. Era jornalista nas empresas de comunicação da família e mulherengo como o avô de Margot. Para casar-se com ela, divorciou-se da primeira mulher, que lhe dera três filhos.

Claro que disseram que o golpe de Estado que ele arquitetou, em 1959, para derrubar um presidente-ditador que, obviamente, não era de sua família, foi perdido porque Fidel Castro (ah, um comunista!, como se acusa sempre) recém chegado ao poder no mesmo ano - o que põe em dúvida tal suposição -, falhou no apoio que prometera. Quem lhe concede asilo político? Juscelino! Primeiro na embaixada do Brasil em Londres, onde “Tito” era embaixador do Panamá; e depois no Rio, onde, hospedado o casal no Copacabana Palace, revelou-se `a elite da ainda capital da república a origem de Margot Fonteyn na família de um “rico” industrial brasileiro. Ou isso já era, como dizia Maneco Muller, uma das lendas do Rio de Janeiro tão aristocrático quanto Londres, ou do Brasil, tão oligárquico quanto o Panamá. De toda maneira, a história deve ter sido perfeita para reforçar a percepção da oportunidade que esse asilo representava: traria mais prestígio político `a Juscelino e ao Brasil no exterior. Quem sabe se a iniciativa partiu da própria Margot? Ou de sua família brasileira, que, a esta altura, orgulhosíssima do seu sucesso, já devia tê-la incluído na sua árvore genealógica e até, quem sabe, atribuído seu talento para a dança `a sua origem brasileira?

Seja como for, Margot Fonteyn, como era de sua natureza, logo arregaçou as mangas. Apresentada, outra vez por contatos palacianos, `a jovem amante do ballet Dalal Achcar, leva esta a Londres, onde, diz Dalal, lhe ensinou tudo que ela até hoje sabe. Volta, como prometera, ao Brasil, fazendo um tour profissional pelo país, assim descrito pela amiga e protegida brasileira: “em condições indescritíveis, que só a Margot poderia [aceitar] fazer.” Mais tarde, em plena ditadura militar, ela e Nureyev se apresentaram num Municipal completamente lotado, seguido, a pedido da amiga Dalal, de um concerto popular no Maracanã, em 1967.(5)

 Enquanto isso, Juscelino construía Brasília, “a toque de caixa”, segundo Oscar Niemeyer. Corria contra o tempo: estava no antepenúltimo ano de um governo que, tendo como colaboradores arquitetos, urbanistas, artistas, poetas e músicos, só teria a ganhar com a dança, que praticamente se jogava em seus braços com o pedido de asilo de Margot Fonteyn. Embora a passagem da bailarina desse frutos somente após o término do seu governo, este criou as condições para que aflorassem os movimentos culturais e artísticos que se vinham gestando durante e depois do último governo Vargas.  Desde os exilados pelo próprio Vargas, como Nise de Silveira, que revolucionou o tratamento psiquiátrico do Hospital do Engenho de Dentro com um ateliê de que participaram artistas como Ivan Serpa, Abraham Palatinik e Almir Mavignier, ao crítico de arte Mario Pedrosa que, além de manter uma coluna no jornal Correio da Manhã, foi também formador de artistas como Livio Abramo, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Ligia Clark. Se tais artistas se originavam na elite intelectual e econômica (mas também culta) que acreditava estar o Brasil pronto para uma experiência mais internacionalista (ao contrário do nacionalismo presente na geração modernista), o país experimentava ainda o influxo dos intelectuais e artistas exilados da Europa sob o nazismo, ou dos que, já famosos, estavam impedidos de realizar suas obras pela falta de incentivos financeiros na sua Europa empobrecida pela guerra.(6) Assim foi que Juscelino presidente, ajudado por sua personalidade sempre aberta `as novas idéias, viu nascer a Poesia Concreta e a Bossa Nova, que ajudou a exportar. Nas fotos abaixo, em carrousel: 1) Juscelino sendo presidente: 2) A equipe que projetou e construiu Brasília. Da esquerda para a direita da foto: Lúcio Costa (recuado, ao lado de JK); Israel Pinheiro (atrás), Niemeyer (de frente para a câmera e ao esquerdo de lado de JK, ao fundo. 3) JK recebe Vinícius de Morais e Luis Bonfá na época da produção do filme “Orfeu Negro”.

A morte recente de João Gilberto, acrescentou a esta já longa memória a lembrança das críticas que, por outro lado, se faziam a JK, como as contidas nas canções do “trovador” Juca Chaves, um dos primeiros músicos pop a se valer da televisão recém-implantada no Brasil (em 1950). Numa delas, intitulada Presidente Bossa-nova, Chaves fazia alusão `a prática de “dancinhas” por parte de suas duas filhas.

 Apesar de todos os seus (bem)feitos, Juscelino morreu vilipendiado (dentre outras “faltas”, tachado – isso não é novo! - como corrupto) tendo sido, talvez, assassinado pela ditadura militar. Margot Fonteyn, viúva de um marido que, a partir dos seis anos de casamento, se tornou quadriplégico em consequência de um atentado político que sofreu. Reclusa na fazenda do casal no Panamá, foi vitimada por uma doença terminal cujo tratamento terminou de arruiná-la financeiramente.  A vida de ambos nos faz lembrar os célebres versos de Shakespeare postos na boca de Macbeth:

“Life's but a walking shadow, a poor player,

That struts and frets his hour upon the stage

And then is heard no more. It is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing.” (5.5, 24-28)


A vida é apenas uma sombra andante, um pobre ator

Que se pavoneia e se gasta durante sua estada no palco,

E depois ninguém mais o escuta. [A vida] É uma história

Contada por um idiota, cheia de som e de fúria

Que nada significa.”(Ato 5.5, linhas 24-25)”

 

Será essa citação aplicável `a vida das repúblicas? A nossa, que teve seu início marcado por militares Bossa-Sangue como Deodoro e, principalmente, como Floriano Peixoto, que sufocou com uma sanha indescritível várias revoltas populares, teve os seguintes presidentes oligarcas da Bossa-Velha varridos pela Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, outro Bossa-Sangue que, num segundo mandato, volta, eleito por voto popular, como Bossa-Sorriso. Depois dele, alguns, por sua falta de carisma, como Dutra, por exemplo, passaram `a História como Bossa-Nadas. Mas tivemos ainda um Bossa-Doce, como Jango; e os Bossa-Loucos, como Jânio e Collor. Sem falar na volta, por vinte anos, dos Bossa-Sangue militares, que exercem uma atração enorme sobre os eleitores dos Bossas-Velhas, cada vez que os “de baixo" começam a levantar a cabeça. Mas também, depois deles, elegemos FHC, um Bossa-Verniz, e Lula, um Bossa-Encarnada, nos dois sentidos da palavra. Dilma foi uma Bossa-Escondida, porque só a revelou depois do seu impeachment. Toda essa trajetória, mal aproveitando a citação do bardo inglês, para assistir diariamente o “mau ator” que nos governa “pavonear-se e gastar“ a nossa paciência. Apenas para, no fim do dia, deixar-nos a sensação de que, nós e nossa república, nada mais significamos. A proximidade desse “elemento” recém eleito com qualquer tipo de bossa é puramente fonética: no ano em que completaremos os 130 anos da nossa república, empossamos um boçal como presidente (com as devidas desculpas ao povo preto, já que assim os brancos chamavam os seus escravos recém-chegados ao Brasil) .

 

NOTAS:

1 https://www.pointemagazine.com/nureyev-documentary-2019-2631616063.html

 2 FOLHA DE SAO PAULO. Mercado. São Paulo, domingo, 11 de dezembro 2005. 

 3 Daneman, Meredith. Margot Fonteyn. New York:Viking/Penguin, 2004. 654 pp. As informações sobre a biografia de Fonteyn foram obtidas através da reprodução do primeiro capítulo desse livro no New York Times : https://www.nytimes.com/2004/12/05/books/chapters/margot-fonteyn.html?module=ArrowsNav&contentCollection=undefined&action=keypress&region=FixedLeft&pgtype=article e da resenha deste livro, escrita por Jann Parry, publicada pelo The Guardian: https://www.theguardian.com/books/2004/oct/31/biography.stage

 4 https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/05/130502_panamagolpe_bailarina_pr

 5 https://oglobo.globo.com/cultura/ballet-dalal-achcar-completa-45-anos-formando-geracoes-no-rio-20333386

 6 Madeira, Angélica, “O concreto Desarmado”, o Brasília e Construtuvismo: Um Encontro Adiado. 20 de julho a 19 de setembro de 2010. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil. 7-29.