Vozes (literárias) do Mundo: Festival do Pen Club em New York

Entre os dias 6 e 12 de maio, o Pen Clube (PEN/ Caneta, sigla formada com as iniciais das palavras Poets/ Poetas, Essayists /Ensaístas e Novelists/ Romancistas), realizou a 15a. versão do seu World Voices Festival / Festival de Vozes do Mundo que, como o nome anuncia, recebe escritores de todo o mundo para falar de sua obra em vários endereços de New York ligados `a literatura. O tema deste ano foi Open Secrets / Segredos Revelados, fiel`a atitude progressista tomada pela direção desse “clube” literário desde que Donald Trump assumiu o poder. A nova diretoria do PEN pôs em prioridade a defesa da liberdade de expressão, um dos fundamentos do clube fundado da Inglaterra em 1921 para estabelecer uma comunidade de escritores que assegurasse a promoção da literatura.

 Esse Festival do PEN Clube consiste de mesas e entrevistas, com presença de escritores, pensadores e os ativistas recentemente agregados, sempre bilíngues, ou seja, o autor presente lê um trecho de sua obra no original, seguido por sua tradução ao inglês lida por outro participante do painel.  Quando estou aqui, minha escolha recai em prestigiar os convidados brasileiros e / ou latino-americanos, aos quais junto um evento que me diga algo sobre o momento literário presente nos Estados Unidos.

 Neste ano, a única presença brasileira que identifiquei foi a da Márcia Tiburi, lançando o romance Sob os pés, meu corpo inteiro (lançado no Brasil em dezembro de 2018). Passado numa São Paulo distópica, a narradora refaz a trajetória de resistência que levou `a morte a sua única irmã, durante a ditadura militar brasileira. No painel Voices of the Silenced / Vozes dos Silenciados, realizado na livraria franco-americana Albertine, Tiburi teve como companheiras a americana Idra Novey, com Those who Knew /Aqueles que Sabem (2018), romance que, mesclando memória e ficção, trata dos crimes sexuais cometidos por um político muito popular, encobertos pelo silêncio. E Scholastique Mukasonga, escritora de Ruanda, conhecida dos brasileiros, pessoalmente, por ter estado na FLIP de 2018; e literariamente pela tradução de dois de seus livros ao português. Scholastique leu um trecho do primeiro que escreveu, publicado em francês em 2004, e traduzido ao português como Baratas e em inglês (2016) como Cockroaches. Escrito, segundo ela, “sem pretensões literárias”, o livro é uma memória do genocídio perpetrado pelos hutus contra os tutsies, etnia de sua família. Tiburi narrou bravamente a atual desgraça brasileira, embora a história de Scholastique tenha feito com que as denúncias das duas outras escritoras que compunham o painel parecessem tragédias muito menores.

Marcia Tiburi, Scolastique Mukasonga e Idra Novey, nessa ordem, em carroussel.

Na área hispano-americana, o painel acontecido no espaço cultural SubCulture, no East Village, The Library of Borges / A Biblioteca de Borges, composto pelos escritores Rodrigo Fresán (argentino) e Rodrigo Rey Rosa (guatemalteco), tratou do cânon literário que o nome de Borges suscita. O tema acabou por engessar a mesa, já que os autores, direcionados a Borges, tiveram pouco tempo para falar de sua própria obra. Enquanto Fresán, cujo bom humor garantiu a leveza do evento, emulou a Borges, tomando-o como modelo, Rey Rosa, guatemalteco, recusou-se a aceitar Miguel Ángel Asturias, seu conterrâneo, como um cânon a seguir. Comprei um livro de cada desses escritores, que ainda não li, seduzindo-me mais o livro Tres novelas exóticas, de Rey Rosa, por tratar o tema do exotismo de nossas paragens, comparados ao de outros continentes (o escritor viveu em Tanger, no Marrocos, por muitos anos), sobre o qual venho me debruçando faz algum tempo. Rey Rosa tem alguns de seus livros traduzidos ao português. A ficção des-inventada presente no romance La parte inventada, de Frésan, ficará pra depois.                                                    

 O ápice da representação da América Latina foi a homenagem prestada pelo Pen Clube ao poeta chileno Raul Zurita, com o apoio do Poetry Project (aquele grupo que apoiou a visita da poeta portuguesa Ana Luísa Amaral, no mesmo lugar), de cuja correspondência eletrônica copio as fotos abaixo. A importância do poeta foi marcada por uma recepção ao público nos jardins da Saint Mark’s Church, com música ao vivo e um coquetel. Como nos outros eventos do Festival, o autor foi levado a responder perguntas, no caso por um dos seus grandes amigos e admiradores: o crítico literário inglês William Rowe (na primeira foto, o mais alto, `a direita). Enquanto isso, a parte mais experimental de sua obra - versos projetados na Cordilheira dos Andes denunciando crimes da ditadura militar chilena – se viam num telão posicionado ao fundo e acima da mesa ocupada pelos participantes do painel. A voz alquebrada e quase inaudível de Raul Zurita, o corpo, que mal se podia manter ereto, mesmo sentado, comoveram muito o público que lotava o adro da igreja. No entanto, ao levantar-se para ler no original partes do seu longo e belíssimo poema INRI, cuja tradução de Rowe, ao inglês, se lançava naquela noite, sua voz de praticante da poesia performática ganhou a mesma juventude e eloquência que ajudaram a fazer de Zurita um poeta mundialmente respeitado. O enorme e demorado aplauso, com toda platéia de pé, ao final da leitura, desenhou um sorriso agradecido e feliz no seu rosto, alegria que se estendeu `a platéia, onde encontrei colegas americanos, ex-alunos e muitos outros leitores da literatura latino-americana, de todas as idades.


Mas eu estava ainda muito interessada em ouvir algum escritor desse país aqui, onde vivo metade do ano. E nada melhor do que a homenagem prestada `a escritora, poeta, compositora e guitarrista americana Patti Smith para preencher esse interesse.

 O evento, era, na verdade, a entrega oficial da premiação obtida por votação popular, promovida pela Prefeitura de New York, que elege o Livro do Ano, “aquele de que você se lembra partes ou frases, aquele que você se recorda ter lido com amigos”, diz o regulamento do concurso One Book, One New York / Um Livro, Uma só New York. O prêmio foi atribuído ao primeiro livro (Just Kids, 2010 / Apenas Crianças) de Patti Smith, biografia de juventude, com ênfase na sua relação - amorosa e de amizade - com o fotógrafo e artista visual Robert Mapletorne, quem, afirmou ela mais uma vez diante do público que lotou o Symphony Space para ouvi-la, lhe pediu, no leito de morte, que o escrevesse.  

 O único caso de votação popular de literatura que me veio `a memória foi no Brasil: o de Olavo Bilac, que até morrer era lembrado pelo título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, obtido da mesma maneira.

Mas a aparição de Patti Smith esteve mais pra Maria Betânia do que pra Olavo Bilac. Como Betânia, a multifacetada artista americana não tinge seus longos cabelos brancos, nem usa maquiagem. Recebida com uma ovação da plateia, onde as vozes femininas predominavam (embora também estivessem presentes muitos homens), Smith revelou-se muito clara e articulada. Relembrou Mappletorne e seus tempos de convívio com os ídolos do rock que se hospedavam no Chelsea Hotel, onde ela e Robert moravam, já narrados no livro. No entanto, descartou todos os estereótipos. Aos de sua geração, também explicitados no livro, quando ela reclama de que não gostava de perder tanto tempo esperando a “lalica” dos amigos passar pra poder sair do hotel. No palco do Symphony Space, ressaltou ainda não usar drogas pesadas por nunca ter sido auto-destrutiva. Descartou também sua inclusão nas novas identidades da geração do milênio, ao reafirmar sua opção heterossexual, bastante transparente, também, na sua aparência física; embora suas fotos de divulgação sempre tentem deixar sua opção de gênero em aberto. Segue o link da entrevista, na sua totalidade: https://www.facebook.com/symphonyspace/videos/1931659210272027/

Patti Smith no palco do Symphony Space.

Patti Smith no palco do Symphony Space.

Patti Smith continua escrevendo. De seus livros recentes, li apenas M Train, que me interessou por citar a passagem do furacão Sandy por New York, fato que também ocupa um dos capítulos dos meus Diários da Patinete. Sem um pé em Nova Iorque. No livro de Patti Smith, Sandy é apenas uma referência. Mas foi interessante saber que ela escreveu seu livro num café que, desaparecido, transformou-se num restaurante italiano, pequeníssimo, mas barato e cheio de bossa, que costumo frequentar (La Cotena, na belíssima Bedford St., no Greenwich Village). Gostei menos deste livro do que de Just Kids, que é, de fato, em belo retrato da juventude de uma geração iconoclasta e da cidade que ela habitava.

Patti Smith recebeu um coro de ovações vindas do balcão do teatro ao falar de sua origem na cidade de Jersey City (gente de lá, talvez, que deve ter chegado ao teatro depois de uma longa viagem no trem urbano que liga essa cidade a Manhattan), onde, segundo ela, a falta de opções culturais a fez migrar pra New York City. Falou da família pobre –mãe garçonete e pai operário - e dos vários irmãos, com os quais mantém excelente relação. Falou da família que formou com o marido já morto e dos dois filhos que criaram, hoje ligados, como os pais, `a música. Falou ainda – e muito – de literatura, do tempo que se leva para escrever um livro. Falou de seus mestres, dentre os quais citou o escritor chileno Roberto Bolaño, o que prova que a comunidade da literatura pode compor-se de muitas e diferentes nacionalidades, como em 1921 idealizaram os fundadores do PEN Clube.

 Fiquei pensando de quantas diferentes maneiras se pode abordar a literatura e quantas definições e quantos gêneros foram abarcados no Festival do Pen Clube deste ano. Também foi bom perceber que muitos dos autores nele presentes estiveram, inclusive antes de passar por aqui, no Brasil, onde se podem encontrar traduções de suas obras. Iniciado na onda das celebridades globais que despontavam com a propalada globalização nos anos 90, o Festival Vozes do Mundo, do PEN Clube americano, vem contribuindo para alçar `a essa categoria escritores que, da solidão de suas escrivaninhas saem direto aos holofotes do palco, submetendo-se, cada vez mais, ao contato direto com uma platéia. Mas só a palavra de boa qualidade, conseguida pelo trabalho duro e constante, muitas vezes de toda uma vida, recebe uma resposta verdadeiramente positiva do público. Nacional ou estrangeiro, o reconhecimento de um escritor passa pela sua capacidade de universalizar sua localidade com um texto que o público possa ler como verdadeiro. Nem sempre a cultura das celebridades consegue essa proeza.

Nota: Por motivo de viagem, estarei ausente deste espaço por mais de um mês. Mas você pode continuar me seguindo pelo Instagram.

 

Cem anos da New School e o 5 de Maio Mexicano(?) nos Estados Unidos

No último sábado, como todo princípio de mês, lá estava o belo, gratuito e competente jornal West View News, deixado na portaria do edifício onde moro. A notícia de capa de maio é o centenário da New School. Nesta universidade formou-se a dramaturga e fundadora do Living Theater, Judith Malina, personagem dos meus Diários da Patinete. Sem um pé em New York. Ela é, também, uma das pessoas a quem dedico o livro. Razões, portanto, suficientes para despertar meu especial interesse por esse número do jornal do meu bairro, aqui em New York. Além disso, conheço bem a universidade porque minha filha graduou-se na Parson School of Design, afiliada `a New School.

Sede antiga (e ainda em uso) da New School na 5a. Avenida, tendo ao lado ao lado a Parsons School of Design.

Sede antiga (e ainda em uso) da New School na 5a. Avenida, tendo ao lado ao lado a Parsons School of Design.

 Mergulhei na leitura do artigo.

 O primeiro capítulo do livro A Drama in Time / Um Drama no Tempo, que conta a história da instituição, está incluído na matéria. Seu autor, John Reed, é um dos seus professores. Reed começa respondendo a uma pergunta, dentre as muitas, que em geral se faz ao descobrir que a New School não é tão nova assim. Tampouco é uma “escola”, já que se trata de uma universidade. Portanto, por que recebeu esse nome? Por que a necessidade de marcar, no nome, a sua novidade? A curiosidade já revela o ato contestador incluído na fundação, em 1919, da New School For Social Research / Nova Escola de Pesquisa Social, em New York.

 Naquele ano, a cidade já contava com várias universidades, a maioria delas privadas e /ou religiosas. Lembro que a palavra inglesa College, que aparece em muitos nomes das instituições citadas aqui, hoje sinônimo de universidade, indicava, na Inglaterra medieval, o lugar onde um estudante se inscrevia para adquirir o conhecimento de mais alto nível, especialmente religioso. Com a chegada do Renascimento e da busca do conhecimento mais voltado ao universal, ao mesmo tempo em que surgiam diferentes especialidades, surge a palavra university para indicar o aglomerado de colleges onde o aluno vai buscar um diploma e / ou uma profissão. Entre os colleges / universidades do tempo colonial, a mais antiga de New York é a Collegiate School / Escola Colegiada, nascida em 1628 e até hoje reservada apenas aos rapazes. Foi fundada pela Companhia (Holandesa) das Índias Ocidentais dois anos depois da Cia. ter comprado a Ilha de Manhattan dos índios Lenape, seus habitantes originários, por 25 dólares, ao preço de hoje. A Assembléia Regional da Igreja Reformada da Holanda foi a co-fundadora dessa primeira universidade. A segunda foi a Trinity School (mista, fundada em 1709), sustentada pelos missionários anglicanos e seus fiéis até 1968, quando a escola cortou os laços com a igreja. A terceira, fundada em 1754 da mesma forma que o King’s College, de Londres, através de uma “carta régia” de George II, da Inglaterra, é a Columbia University / Universidade de Columbia. Das três, a única dedicada exclusivamente ao ensino superior. Essa origem aristocrática permaneceu entre o alunado, recrutado nas classes abastadas da cidade, cujas famílias podiam – e podem - pagar os altos custos da educação nela recebida.

Contra essa predominância, surge, já no país independente, a New York University, fundada em 1831 por ricos comerciantes, banqueiros e homens de negócios, onde o critério de admissão seria o mérito, em lugar da classe social. Esse modelo mais democrático, seguia o da Universidade de Londres, fundada para atender aos estudantes de todas as partes do Reino Unido, diminuindo, com isso o privilégio restrito `as medievais Oxford e Cambridge. O projeto da NYU foi apresentado `a prefeitura e ao Estado de New York, que o rejeitaram.  Os próprios fundadores, então, através do que hoje se chama crowd funding, conseguiram arrecadar os 100.000 dólares que bancaram sua independência de qualquer instituição religiosa, além da sua primeira sede na parte sul da Ilha de Manhattan, logo transferida para a Washington Square Park, onde até hoje se localiza.

De maneira semelhante, o bispo católico (irlandês) John Hugues, funda em 1840 o Saint’s John College, na cidade de Fordham, no Bronx, que mais tarde passou a dar nome `a universidade. Depois de angariar localmente 10.000 dólares, Hughes viaja `a Europa, onde, chamando a atenção dos católicos sobre a dificuldade dos fiéis dessa religião nos Estados Unidos, conseguiu o suficiente para adquirir o terreno onde até hoje ela se situa. Convence também os jesuítas a serem seus professores. Outra escola católica, o College of Mount Saint Vincent / Colégio do Monte São Vicente só para moças, surge em 1841, fundado pelas freiras da congregação Sisters of Charity of Saint Vincent de Paul of New York / Irmãs de Caridade de São Vicente de Paula de New York.

Só em 1847 uma universidade de fato “pública” (e laica) apareceu em New York City: a Free Academy of the City of New York / Academia Livre de New York, fundada pelo diplomata e homem de negócios Townsend Harris, com o objetivo de oferecer livre educação para os pobres e filhos de imigrantes. Sua primeira turma de homens (as mulheres só foram admitidas em 1930), de diversas raças e classes sociais, graduou-se em 1853. Em 1866, a Academia Livre recebe o nome de The College of the City of New York / Colégio da Cidade de New York. Em 1961, quando o sistema City University of New York / CUNY se inaugura, esse College, ainda instalado no belo prédio neo-gótico construído em 1906, passa a chamar-se City College of CUNY / City College da Universidade da Cidade de New York / CUNY. Fui professora do sistema CUNY por seis anos, estando lotada no Graduate Center / Centro de Pós-Graduação, localizado na 5a. Avenida, no. 365. Foi uma experiência muito rica, por mostrar-me outra face das universidades americanas, muito diferente da adquirida numa Ivy League (Yale University), onde até então trabalhara.

Portanto, a New School, baseada numa pedagogia inovadora, é o clímax da contestação do modelo adotado pelas “old schools / velhas escolas” da cidade. Sua principal diferença foi ter sido inteiramente fundada por professores. Com exceção de Thorstein Veblen, todos com a carreira iniciada na Universidade de Columbia, de onde saíram para fundá-la, por “razões políticas, de liberdade acadêmica, de filosofia educacional, ou as três” (Reed, West View News, Vol.15, no. 5, May 2019, p. 1). O escândalo da demissão do primeiro deles, J.E.Springarn, por discordar da participação dos estudantes, como soldados, na Primeira Guerra Mundial, foi seguido  do pedido de demissão dos professores James Catell e Henry Dana, abertamente pacifistas, seguido pelo de Charles Beard, que num livro de 1913, segundo resenha do New York Times `a época da sua edição, tinha cometido o pecado de “mostrar os fundadores da república americana e da sua Constituição, como um círculo fechado de especuladores de terra” (Reed, p.5) e outros “defeitos” mais. Thorstein Veblen, autor de dez livros, dos quais o primeiro, The Theory of the Leisure Class / Teoria da Classe Ociosa (1899), tem até hoje muitos leitores (como eu, por exemplo, que o acho um livro fascinante), na época trabalhando em Washington, junto ao presidente Woodrow Wilson, num acordo de paz após a Primeira Guerra, se junta ao grupo fundador e dissidente de Columbia, cujo último professor demitido foi James Robinson, a quem um presidente anterior a Wilson, Theodore Roosevelt, já havia acusado de “vergonhosa reversão da verdade histórica.” (Reed, p.5).

Como tinha acabado de chegar da rua, onde grupos de mocinhas, com os cabelos cobertos de flores, alegremente entravam nos bares e restaurantes do bairro em busca da “fiesta mexicana” de 5 de Maio, não pude deixar de me lembrar, neste ponto da leitura, desse velho Roosevelt, o primeiro a aplicar a doutrina Monroe `a política americana para a América Latina. As moças festeiras, ao adentrar os bares, não se lembram disso, é claro. Tampouco sabem que o “5 de Maio”, no México, é lembrado apenas em pequenas cerimônias oficiais que marcam a vitória mexicana numa batalha (na cidade de Puebla, em 1832), contra os franceses que ocupavam seu território. Seu valor simbólico reside no fato de ter sido vencida pela população que ajudou o seu exército a vencer a bem treinada e equipada tropa de Napoleão III. No entanto, revertida com a posterior chegada dos franceses `a cidade do México, onde estes entregam o poder central do país ao “imperador” francês Maximiano III, a Batalha de Puebla perde sua importância inicial.

Para os alegres jovens americanos, no entanto, o 5 de Maio se inclui na farra que marca o fechamento do ano letivo, coincidindo, também, com o final do campeonato nacional de futebol americano, o esporte mais popular do país. Embora ainda faça frio, todos tiram do armário roupas mais frescas,  especialmente se o dia é de sol, como foi o caso desse sábado. Enfeitam-se “como” as mexicanas - Frida Kahlo massificada como modelo - e mexicanos (chapéus de aba larga para os homens). Tudo estimulado pela decoração dos bares com as mesmas flores que as moças trazem nos cabelos e com tiras de papel crepom colorido, originalmente desenhado `a mão, com tesoura, mas hoje vendido a metro nas papelarias. As vezes, como na foto abaixo, incrementam o visual com um design, digamos, mais “moderno”.

 
Festa recente do 5 de Maio em New York City.

Festa recente do 5 de Maio em New York City.

 

As moças não sabem, ou esqueceram, que essa festa é, na verdade, americana, já que foi celebrada pela primeira vez durante a “corrida do ouro” na California, pouco antes anexada ao território americano como um Estado “livre”, assim como Arizona, Colorado, Novo México e Texas, que também pertenciam ao México. A iniciativa de celebrar a data, assim que receberam a notícia da vitória em Puebla, partiu dos mexicanos nascidos na parte anexada, ou recém imigrados do norte do México, onde se localiza a cidade de Puebla. Com a Guerra Civil americana ainda em curso, se viam na iminência, caso os confederados a vencessem, de perder a liberdade adquirida com a independência do México, que tinha trazido com ela a abolição dos escravos e a igualdade racial.

Portanto, as moças recordam corretamente, com o 5 de Maio, sem o saber, o México-americano que lhes entrou pela comida, pelas margheritas e outros tragos `a base de tequila ou mezcal; e pela língua espanhola, ouvida a cada minuto, a tal ponto que hoje está nos sobrenomes de representantes eleitos para as Câmaras legislativas dos Estados Unidos. Mas o que as moças mais guardam de tudo isso é a cultura da siesta-fiesta com que etiquetam os supostos donos da festa, da qual se permitem participar uma vez por ano.

Festa contemporânea do 5 de Maio numa pequena cidade da Califórnial, estado que mais celebra o 5 de Maio. Como se vé, de uma maneira mais “mexicano” e folclórica.

Festa contemporânea do 5 de Maio numa pequena cidade da Califórnial, estado que mais celebra o 5 de Maio. Como se vé, de uma maneira mais “mexicano” e folclórica.

Será que as moças sabem que a política externa do presidente Roosevelt, acima citado, se reedita agora na atual presidência do país, que muitas delas odeiam? Será que suspeitam que esses seus dois presidentes aplicam a “Doutrina Monroe” (documento de 1823) do presidente James Monroe, que estipulou o protetorado da América Latina pelos Estados Unidos, nele contida? Aquela, que sob Roosevelt, ficou conhecida como a política do Big Stick / Grande Porrete?

Big Stick de Roosevelt.png

Uma das primeiras aplicações da “doutrina Monroe” deu-se no Peru, detentor da maior reserva do petróleo da época, o “guano” (excremento dos pássaros marinhos acumulado nas ilhas costeiras daquele país), muito cobiçado como fertilizante, matéria prima essencial nos países predominantemente agrários daquele tempo. Antes de ser extraído até o seu desaparecimento, a corrida ao guano causou a morte de muitos peruanos. O líder do movimento que tentou conter tal destruição, morto em combate, se transformou num dos heróis reverenciados do seu país.

Dançando a música latina que as carrapetas dos DJs não param de tocar, as moças de cabelos floridos devem esquecer-se de que a ajuda americana na derrubada do Império Espanhol na América, concretizada em 1898, foi estendida indefinidamente pela doutrina de Monroe, segundo a qual essa ajuda se perpetuaria numa espécie de protetorado dos Estados Unidos ao resto da América. Seu primeiro resultado foi a anexação de Porto Rico e das Filipinas ao território americano, fazendo de Cuba uma espécie de seu satélite.

Como sei de tudo isso e nunca, por mais que tente, disso me esqueço, foi muito bom confirmar que sempre houve, nos Estados Unidos, intelectuais que se insurgiram contra o pensamento autoritário de seus superiores e de seus governos, como esses professores, faz um século, fizeram. Fundando uma universidade que sequer queriam que tivesse esse título. Uma “escola” que contribuísse na formação de um pensamento crítico. Para isso, trouxeram da Europa professores perseguidos pelos nazistas na época da Segunda Guerra Mundial. Dentre eles, Edwin Piscator, companheiro de Brecht na criação do teatro épico-político, que ensinou tudo a americanos como Marlon Brando, Tennessee Williams, Judith Malina e Julian Beck. Os dois últimos, fundadores do grupo americano Living Theater, influenciador de mudanças radicais do teatro ocidental. E preso no Brasil durante a ditadura militar.

O mais novo edifício de New School, inaugurado em 2014.

O mais novo edifício de New School, inaugurado em 2014.

A celebração do centenário da New School continuará pelo resto do ano. Mantenham-se ligados nela, porque valerá a pena conhecer melhor a atividade dos professores e artistas cujo trabalho nessa universidade incentivou e assegurou o desenvolvimento de um pensamento alternativo e progressista no país onde nasceram, expandindo-o a outros países e outras culturas.

Charlie Bird(s) Park(er)s e as bibliotecas Públicas de New York

A hora de fechamento da Biblioteca Pública da Praça Tompkins, no East Village, se aproximava. Tentando entrar, correndo, quase fui atropelada pela senhora que saía, cabelos desgrenhados e olhos vazios. Na mesa de recepção dos leitores, onde dois funcionários jovens conversavam, ao perguntar pela Feira de Editoras Independentes, para onde me dirigia, recebi uma resposta meio mal-humorada, seguida de uma consulta ao relógio na parede: “Ah, o pessoal da Seção Hispânica! Lá embaixo, no porão. Elevador `a frente, lado esquerdo”. Um menino, no limite da obesidade, entrou conosco no próprio, onde logo expressou estupor ao perceber que o elevador desceria.  Escafedeu-se correndo, como se fôssemos uma assombração.

 
Edf
 

Não me lembro de ter tido uma recepção tão inesperada ao estar lá pela primeira vez, no dia 12 de maio 2016, quando o escritor brasileiro José Luiz Passos trocou suas experiências sobre “poética” com a artista plástica venezuelana, Patricia Van Dalen, ambos com excelente atuação. Aquele evento, incluído na série “Poética/ Poetics”, teve a curadoria das poetas Ana Rusche (brasileira) e Mercedes Roffé (argentina). Esta última, com sua editora (Ediciones Pen Press) estava presente na Small Press Exhibition, para a qual eu chegava – atrasada - no último sábado. Nele estiveram também Alan Felsenthal (ed. The Song Cave), Tej Hazarika (ed. Cool Grove Press) e Val Vinokur (ed. Poets and Traitors). No stand desta última, descubro o livro Education by Windows, do poeta Johnny Lorenz, também tradutor e professor de literaturas de língua inglesa, na Montclair U., a universidade estadual de New Jersey. No miolo do volume, que contém poemas de sua autoria, estão suas traduções da obra do poeta brasileiro Mário Quintana. Comprei o livro por conhecer a poesia e seu autor, meu companheiro no livro Luso-American Literature (2011, Rutgers UP). Nesse livro, os poemas de Lorenz (304-8) se seguem ao meu conto “Cowboy Music” (304-3).

Em Education By Windows / Educação [feita] pelas Janelas, Lorenz trata o tema da sua ascendência brasileira e seu consequente bilinguismo, transformando-os em estímulos poéticos. Numa crônica anterior, mencionei o nome da nossa pomba rola, ou rolinha, surpreendida de que, em inglês ela seja considerada como uma pomba enlutada, cantando, permanentemente, o sua tristeza. Johnny Lorenz trata do tema no poema “Mourning Doves Meter / O Metro da Pomba Rola”, incluído no livro (16-17).

Começando com a dificuldade de um falante bilingue em perceber sons muito semelhantes entre uma língua e outra, Lorenz brinca, na primeira estrofe, com a oposição “morning / manhã x mourning / luto”, palavras foneticamente quase indistintas, em inglês: “I thought it was a morning dove / because in the morning I would wake / to the bird’s sullen spondee.” Em tradução literal: “Eu pensei que era uma pomba manhã / porque, de manhã, eu acordaria / para o soturno espodeu do pássaro”.

Depois de duas estrofes, com outros exemplos dessa dificuldade, Lorenz volta ao tema da pomba rola ou pomba de luto: “In my inacuracies, / I was not enterely innacurated./ The mourning dove / is not mourning; it’s a song we’ve translated / in error.” / Nas minhas imprecisões/ Eu não fui inteiramente impreciso./ A pomba enlutada / não está cantando o luto; seu canto é uma canção que traduzimos / erradamente.”

A estrofe seguinte prepara o salto da aparente descrição de um ponto de contato entre duas línguas a uma póetica nova a ser construída com as invenções da antiguidade: “But bring the dove into to my work / How shall I warble myself? / Mas, para trazer a pomba `a minha obra / Como devo, eu-mesmo, trinar?” E o próprio poeta responde na estrofe seguinte: “I’ll be a mockingbird/ in my dictionary perched / and with the mourning dove’s meter / sing back: / Eu serei um pintassilgo / empoleirado no meu dicionário / e, com o metro da pomba rola / responderei cantando:

dawn’s dooms,                                               a sina da aurora

                                      dew-                                                                   orvalh-

                                      strew                                                                    alastrou

O poema termina com três estrofes mais desses exercícios de “espondeu”, o verso greco-latino de apenas duas sílabas longas, mesmo ritmo do canto da pomba rola, a que Lorenz se referiu, logo na primeira estrofe. Tratamento ao mesmo tempo erudito e intuitivo do tema, que prova o seu domínio da poesia, arte verbal que escolheu como expressão.

Pensando em pássaros, atravessei a rua Dez Leste no. 331, endereço da biblioteca, em direção `a Tompinks Square Park, que lhe empresta o nome. Uma praça, como daqui em diante a chamarei, embora sabendo que os nova-iorquinos sempre acrescentam `a palavra square (que designa uma praça, embora a palavra se refira, literalmente, apenas `aquelas de formato quadrado), a palavra park / parque, quando a praça é muito grande, como neste caso.

Antes de sair, troquei um dedo de prosa com Mercedes Roffé, cuja editora produz livros-objetos, bilíngues e belíssimos. Junto com Marta López Luaces (também professora da Montclair U.) curadora do programa Readings@Tompkins / Bilingual Poetry Series, onde o evento de sábado se incluía, Mercedes Roffé promove, de fato, encontros de autores de língua inglesa com os das outras línguas - muitas - também faladas no bairro onde a biblioteca se encontra. A inclusão do português, sua iniciativa, é muito bem-vinda.

Ainda tive tempo de ver o grupo humano que relutava em sair do salão de leitura localizado ao nível da calçada: pessoas humildes de terceira idade, jovens moradores de rua, crianças, cujas famílias, presas nos seus locais de trabalho, transformam os bibliotecários em baby-sitters, trabalho para o qual não foram treinados. Por outro lado, o salão espelha o esforço que a equipe da Biblioteca Pública realiza nas dezenas de unidades que mantém em toda a grande New York. Estavam expostos livros recentes sobre os mais variados assuntos, para adultos e crianças. Filmes em DVD, mapas. Tudo disponível, para empréstimo, ou leitura nas dependências da biblioteca.

Visto do centro da praça, o prédio da biblioteca emoldura a quadra de basquete e seus usuários.

Visto do centro da praça, o prédio da biblioteca emoldura a quadra de basquete e seus usuários.

Lá fora, a ensolarada tarde de primavera nos convidava a um passeio. Na belíssima Praça Tompkins as árvores centenárias nos recordavam que, apesar do eterno trabalho humano de direcionar essa cidade ao futuro, ela está ancorada num passado rico de gente que persistiu e persiste em viver, muitas vezes em condições terrivelmente adversas. Estavam na praça. Jogando basquete, ou conversa fora, usavam seu espaço.

Claro que o saxofone de Charlie “Bird” Parker me soprou aos ouvidos as últimas palavras. Ele viveu na Tompkins durante o período mais estável de sua vida (1950-54). Das janelas do apartamento térreo da casa geminada de número 151 da Avenida B, onde ele morou, podia contemplar suas árvores e os pássaros que elas abrigam. Uma das lendas sobre a palavra bird / pássaro, adicionada a seu nome, está relacionada com esse endereço. Dizem que, por tocar na praça, `a primeira luz do dia, voltando das gigs e das suas esticadas, associavam sua música ao canto do galo da madrugada, também chamado de bird, entre a gente mais pobre. Outra, que os vizinhos, encantados com o som maravilhoso que tirava do sax, passaram a chamá-lo de “pássaro”. Tudo isso escutei, lá mesmo na Tompkins, além de excelentes músicos e cantores de jazz, recém transformada em moradora de New York, em 2012, durante o Charlie Parker Jazz Festival que celebra anualmente, em pleno verão, a data de aniversário do músico: 29 de agosto.

Casa de Charlie “Bird” Parker na Tompkins Square Park.

Casa de Charlie “Bird” Parker na Tompkins Square Park.

Charlie Parker Jazz Festival na Praça Tompkins. Em 2019, sua 27a. versão, será no dia 25 de agosto.

Charlie Parker Jazz Festival na Praça Tompkins. Em 2019, sua 27a. versão, será no dia 25 de agosto.

Músicos tocando na praça, no último sábado.

Músicos tocando na praça, no último sábado.

 A fama do sax de Charlie “Bird” Parker ainda estimula músicos a tocar na praça por qualquer gorjeta. Como os que estavam lá nessa tarde e que até “Garota de Ipanema” tocaram. Pude apreciar a boa improvisação feita pelo saxofonista, o melhor do grupo.

Já com fome, saímos em busca de um lugar para tomar um café, o que não foi difícil,  graças ao grande número de cafés, bares e restaurantes recentemente inaugurados nas ruas próximas. Decidimos por um francês, por mais vazio e tranquilo e pelo jazz, de muito boa qualidade, como música ambiente. Apesar do dono ser, de fato, francês, quase todos os funcionários eram mexicanos, ou latino-americanos, a última das levas de imigrantes a ocupar o bairro, que já foi alemão, judeu e ucraniano.

1988, na Praça Tompkins. Protestos violentos contra a expulsão dos que a ocupavam e contra a consequente gentrificação do Lower East Side, parte da cidade onde a praça se localiza.

1988, na Praça Tompkins. Protestos violentos contra a expulsão dos que a ocupavam e contra a consequente gentrificação do Lower East Side, parte da cidade onde a praça se localiza.

Tentei imaginar como seria a Praça Tompinks antes da sua gentrificação, principiada nos anos 90, em seguida a um grande motim dos moradores de rua e desempregados que lá viviam. Desde 1950/60, seu nome e até sua caracterização como praça tinham sido esquecidos pelo resto da cidade: ela era apenas o Needle Park / Parque das Agulhas, nome adquirido em razão dos que buscavam o esconderijo da sua vegetação para usar drogas pesadas.

Pensei, finalmente, na repetição infinita desse processo. Primeiro, toleram e estimulam o capital ilícito que a droga põe em movimento, enquanto o capital lícito corta os direitos dos trabalhadores e os expele tão pronto não se adaptam ao que lhes exige. A exclusão humana assim concretizada, não tendo pra onde ir, ocupa as ruas e outros espaços públicos, como as praças, os jardins e as bibliotecas públicas, tornando-os lugares desagradáveis para o público acostumado a utilizá-los. Daí a que aceitem o seu fechamento ou a sua descaracterização, é um pulo.

No momento, o governo federal ameaça fechar as bibliotecas públicas do pais. Como já fez, sob Reagan, com os Centros Comunitários de Saúde Mental (públicos). A desintoxicação, hoje, só está disponível da classe média alta para cima, em clínicas caríssimas, escondidas nos subúrbios como spas, ou eufemismos similares.

Os moradores conscientes de New York, estamos na luta pelas bibliotecas públicas. Com abaixo-assinados e mensagens massivas pelas redes sociais, além de outros recursos, tentamos barrar o processo. Devemos conseguir, mas então virá outra luta e mais outra. Até quando?

Ares e subterrâneos de New York: caixas de surpresa

Que New York é uma cidade dançante e sonora todo mundo sabe. Parte de sua fama e da qualidade com que ela se vende vem do jazz, do hip-hop, dos dançarinos de rua e das casas de espetáculos de música e dança erudita. Até da maneira meio ritmada da fala da gente daqui. Mas nem todo mundo sabe que a música de New York pode vir dos lugares mais inusitados. Dos ares, por exemplo. Eu, que escolhi morar num andar em acordo com as possibilidades humanas de contato com a natureza, tenho, na primavera, o canto dos pássaros para acompanhar os meus dias.

 Em lugar do silêncio do inverno, que também tem sua beleza, a primavera se anuncia com os pássaros em alvoroço. O tempo é pouco pra fazer a corte, conseguir companheiro(a), construir um ninho e criar os filhotes. Tudo isso assisto da janela do meu 4o. andar, situado justo na linha do beiral do edifício em frente ao meu, que, por muito antigo (uns cem anos de idade, mais ou menos), tem nele um buraquinho onde, todos os anos, entram os pássaros, gravetos no bico, para confeccionar os seus ninhos.

 Os nossos velhos conhecidos pardais são os primeiros. Ágeis e gregários andam em casais, ou em bandos de casais. Hoje, vi o primeiro common starling, um pássaro preto, com pintas brancas ou meio douradas, se há sol para iluminá-las. Preferem reunir-se em bandos e cantam bonito. Depois vêm as rolinhas, que em inglês se chamam pombas de luto (mourning doves) por alusão ao seu canto, considerado triste. As nossas, por serem de plumagem mais chegada `a cor púrpura, me parecem mais bonitas do que os diferentes tons de marrom que mostram as rolinhas aqui

75265841-1200px.jpg

Os últimos a aparecer, com a plumagem mais bonita de todas, são os blue jays, de penas em diferentes tons de azul, quase do tamanho de um pombo comum.

Estes, os pombos, são, aqui também, uma praga. Estão pelas ruas nas quatro estações do ano, iguaizinhos aos brasileiros e aos europeus. Contudo, no ano passado, tive o privilégio de ter por duas horas o seu predador diante dos meus olhos: um falcão belíssimo estacionou na escada de incêndio que temos diante de nossas janelas. E me fez entender porque caça com facilidade: voa sem provocar um ruído sequer.

 New York também é sonora nos subterrâneos. Desde que me mudei pra cá, já lá se vão sete anos, no corredor de acesso aos trens da estação de metrô que me serve, há um senhor baixinho, de turbante e barba crescida, que toca, de pé, um tarol com duas baquetas, sem parar. Apenas ritmo. Sem letra, nem melodia. Todos os dias. Personagem do bairro, também desfila, mais ou menos `a paisana, na parada anual de Halloween. Poucos lhe dão dinheiro (o que leva esses músicos ao subterrâneo), mas ele segue ali, sempre com um meio sorriso quando alguém o reconhece e cumprimenta.

 Mais interessantes são as estações onde se cruzam várias linhas, porque podem estender-se por muito espaço, com diferentes saídas. Na semana passada, entrei na enorme estação da rua 42 por um lugar nunca antes trilhado. A escada de acesso me levou a uma rua enorme, de duas pistas, só que subterrânea. O espaço era tão grande que um rapaz treinava toques de bola (de futebol brasileiro) com as coxas. Sorri pra ele, que me retribuiu o sorriso. Ao longe, já escutava uma voz soul, feminina, entoando “All night long (all night)...”, canção de Lionel Richie, de 1983. Quase um hino da soul music, sua letra hedonista propõe “jogar no lixo o trabalho por fazer e deixar a música tocar a noite inteira, porque é tempo de festa [em todas as línguas da cidade]: “Parti', karamu', fiesta,” Porque “a vida é boa, selvagem e doce”.

 Quem pode resistir a um apelo desses, além de tudo, recitado num ritmo convidativamente cadenciado em plena tarde de trabalho? Eu fui até onde a música me chamava quase correndo e, claro, já dançando. A platéia da moça, que se acompanhava com uma pequena caixa de som, era um semi-círculo muito amplo, todos sorridentes, feito eu, dançando. O vestido negro como sua pele, com suas listras brancas nas laterais, no sentido vertical, lhe adelgaçava a figura pequena e simpática. Tinha uma voz treinada e bonita. Minha gorjeta, agradecida por ela com um olho no olho sorridente, juntou-se a muitas mais, na cesta que ela mantinha no chão, com esse fim. Segui meu caminho por outra rua subterrânea, certa de que a vida nesta cidade é selvagem, não sei se doce, mas boa.

 Um ano depois de que essa música de Lionel Richie estourou nas paradas, 1984, fiz minha primeira viagem `a New York. A notícia mais surpreendente, ao aqui chegar, era o aparecimento de jacarés nos esgotos da cidade (embora essa lenda já tivesse sido registrada nos anos 20-30 do século xx). Nos anos 80, suspeitava-se de que, trazidos de seu habitat natural como animais de estimação, terminavam por encontrar, nos esgotos, o ambiente de maior semelhança com ele. A selvageria, portanto, não era apenas uma metáfora.

Na estação da rua 14 com a 8a. Avenida, lá está, esculpido em bronze, o jacaré, saindo dos esgotos para agarrar pelo traseiro um corrupto que tenta escapar. Cena observada por uma passageira.

Na estação da rua 14 com a 8a. Avenida, lá está, esculpido em bronze, o jacaré, saindo dos esgotos para agarrar pelo traseiro um corrupto que tenta escapar. Cena observada por uma passageira.

O escultor, Tom Otterness, explica que decidiu incluir o mito do jacaré no conjunto de sua obra sobre a corrupção em New York, exposta naquela estação. Nesses tempos de guerra contra a corrupção, vale e pena aproveitar a passagem pelos subterrâneos da rua 14 para perceber quão antigo é o problema. Algumas das esculturas retratam grandes capitalistas e políticos de New York nela envolvidos no princípio do século xx, tendo como modelos cartoons que os criticavam nos jornais da época.

Os corruptos da atualidade também têm tudo a ver com essa estação, já que ela dá acesso aos pontos turísticos hoje mais populares de New York: a High Line e o Hudson River Park. Sobre a obra que os construiu, faz tempo estourou um escândalo. Segundo o New York Times, que seguiu a história por um bom tempo, as corporações que bancaram o embelezamento da área em decadência em troca de isenção de impostos municipais para as suas novas sedes, para lá transferidas, exigiram da cidade, uma vez instaladas, a extensão de uma das linhas do metrô, de modo a torná-la acessível a seus executivos. Com esse dinheiro, dizem os críticos do projeto, se renovaria todo o sistema de sinalização do metrô, no momento em desastre completo.

 A estação final dessa nova “perna” do metrô, a Hudson Yard, recém-inaugurada, tem a seguinte definição ao clicar-se o nome do “bairro” (que não existia até ser inventado pelas corporações que o construíram): “Hudson Yards  é um empreendimento imobiliário situado entre os bairros do Chelsea e do  Hudson Yards, em Manhattan, New York City. É o maior empreendimento imobiliário privado dos Estados Unidos, em área construída.” https://en.wikipedia.org/wiki/Hudson_Yards As críticas `a essa primeira parte recém entregue a seus usuários foram muitas, quase todas condenando o exibicionismo da arquitetura do seu entorno.

TeenageMutantNinjaTurtles1First.jpg

Foi também em 1984, nos subterrâneos de New York, que nasceram as Tartarugas Ninjas, fonte de renda inestimável para a cidade.

Criadas pelos cartunistas Kevin Brooks Eastman e Peter Laird, as quatro tartarugas antropomórficas, porque mutantes, têm nomes de artistas da renascença italiana: Leonardo, corajoso e preocupado com o bem comum; Donatello, que ama a ciência e a tecnologia; Michelangelo, que gosta de jogos e brincadeiras inventivas; e Rafael, que prefere a natureza e os esportes de desafio físico. Combatem, como Batman, os criminosos, só que treinados por um mestre da luta japonesa ninjutsu, de onde vem o seu nome. Perseguindo dos batedores de carteira aos grandes chefões, os quatro, ao contrário do fino milionário morcego seu antecessor, usam táticas de guerrilha e preferem manter-se na clandestinidade garantida pelos subterrâneos de New York. Esse lado ocidental dos personagens se mistura aos ninjas japoneses, espécie de espiões e sabotadores do Japão feudal, ao mesmo tempo dotados de capacidades super humanas e maravilhosas, como a invisibilidade, a capacidade de voar, de mudar de aparência e de controlar os quatro elementos através da arte marcial. Para melhor desenvolver essas aptidões, se isolavam em castelos afastados do resto da sociedade.

Mas nem tudo nos subterrâneos de New York suscita o maravilhoso. No inverno, seus corredores gelados estão cheios de moradores de rua dormindo como podem, ou como os deixam lá ficar. Quanto aos ares, também podem ser vendidos, como os que encimam a enorme estação de metrô e de trens interestaduais da rua 42, a Grand Central Station, elegantíssima quando de sua inauguração, no ano de 1913. Em inglês, os imóveis, ou melhor, a propriedade imóvel, chama-se “real estate” que, literalmente, significa propriedade real e idônea. Como se pode ler no site da estação: “Empresários sempre venderam a propriedade “real”. Mas a Estação Central de New York foi pioneira em vender a propriedade “irreal”, ou seja, o espaço vazio que se localiza acima dessa propriedade real”.

 Embutindo as linhas, de metrô e de trem, em túneis, os engenheiros da Grand Central Station liberaram os terrenos das ruas acima deles para os edifícios do bairro que hoje se chama o Midtown / “miolo” da cidade, dando partida ao boom de construção, `a volta dela, dos arranha-céus que são a marca de New York. Por trás da bela fachada neoclássica da Grand Central Station, subiu o enorme edifício da companhia de seguros Metlife, engolfada pela crise de 2OO8. Em seguida, a empresa deixou todos os andares que ela ocupava completamente vazios. De humanos e, imagino, de pássaros também.

fabien-bazanegue-561933-unsplash.jpg

Mas isso é uma outra história, que não deve ser contada na segunda-feira seguinte a um domingo de Páscoa que, espero, tenha sido muito alegre pra você e pra todos a quem você bem quer.

 Nota: Para mais fotos e outros detalhes sobre a obra do escultor Tom Otterness, ver a página do artista: http://www.tomostudio.com/

Quanto `a Grand Central Station, ela merece a visita guiada que a estação oferece. O tour mostra partes dela que não se vê, as mais antigas, ainda do tempo em que havia lá apenas uma estação de trens. É uma viagem no passado de New York e do país. Outra atração do terminal é seu restaurante de ostras, famoso, aberto e funcionando no subsolo. Vejam no link https://www.grandcentralterminal.com/history/.

 

Estranhar, estrangeiro: Uma poeta (portuguesa) em New York

Alguns lugares de Manhattan têm a palavra place / lugar agregada `a sua designação, sempre seguindo um nome próprio terminado com o “‘s” do indicador possessivo. Ou seja, trata-se do “lugar” de alguém, ou de algum edifício que, por sua importância na vida da cidade ainda pequena, era uma referência. É o caso da parte leste (entre a 3a. Avenida e a Avenida A), da rua 8, localizada no East Village, mais conhecida por Saint Mark’s Place. Tal nome designa o edifício da igreja episcopal do mesmo nome, uma das primeiras da cidade, que ocupa todo um quarteirão entre as ruas 8 e 9. Hoje, a igreja, voltada para a “justiça social”, continua fiel `a tradição alternativa do seu “lugar”. Os artistas da geração do novo milênio, impedidos pela gentrificação do bairro de lá viver, como o fizeram os expressionistas, nos anos 30, os hippies nos anos 60 e os do punk rock nos 80 do século anterior, só podem agora contar com a igreja que lhe deu nome para mostrar o seu trabalho. Atores, bailarinos, músicos e escritores têm, nas muitas horas não ocupadas pelo culto religioso, espaço para seus eventos. O Poetry Project, por exemplo, fundado e gerido por jovens poetas, lá mantém um calendário anual de leitura e performance de poesia.

Em vermelho, a parte da rua 8 Leste conhecida como “Saint Mark’s Place”. A igreja fica na esquina da 2a. Avenida, entre as ruas 8 e 9.

Em vermelho, a parte da rua 8 Leste conhecida como “Saint Mark’s Place”. A igreja fica na esquina da 2a. Avenida, entre as ruas 8 e 9.

Nele se incluiu o lançamento do livro What’s is in a name, da poeta portuguesa Ana Luísa Amaral, traduzido ao inglês pela inglesa Margareth Jull Costa, no dia 11 de abril. A conceituada editora New Directions (que vem publicando a obra de Clarice Lispector) também cabe no perfil que a igreja traçou para suas mostras, já que desde 1936 se mantém como editora independente de excepcional qualidade. Ter um livro nela publicado representa, para o público culto dos Estados Unidos, um aval da sua obra.

Ana Luísa Amaral e a capa seu livro What’s in a Name?

Ana Luísa Amaral e a capa seu livro What’s in a Name?

Como o decorrer do evento mostrou, também nele coube a personalidade das duas artistas em cena – a poeta e sua tradutora – que, com muita facilidade, incorporaram na sua performance o microfone fixo que obrigava a baixinha Ana Luisa a levantar o corpo e a altíssima Margareth a abaixar o seu pescoço de cisne.

 Transformado o problema inicial em parte do espetáculo, a língua portuguesa tomou o salão.

 Só quem vive no exterior pode avaliar os muitos sentimentos envolvidos na emoção de ver e ouvir a “sua” língua em destaque no estrangeiro ambiente circundante. Especialmente quando ela se mostra em poesia, ou seja, no uso mais fino de se pode fazer de qualquer língua. Ana Luísa Amaral reflete sobre o tema no dos poema “A tragédia dos fados (ou dos factos)”, do qual destaco a primeira estrofe

Ah, o destino frio de te falar

numa língua estranha,

outra que não a minha
— (p. 72)
Ah, the cold fate of having to speak to you

In a foreign tongue, a tongue

Not mine.
— (p. 73)

Filósofos, como Jacques Derrida, que definiu a língua como o último refúgio do estrangeiro, podem ajudar na sua compreensão. Compositores populares, como Caetano Veloso, cujo certeiro verso ”a língua é minha pátria” também o elaboram. Alguns, como o montão de brasileiros que no momento deixam o país, ao primeiro sinal do desastre para o qual a maioria deles contribuiu com seu voto, talvez não o sintam (ainda?).

 Em 1942, o ser estrangeiro no contexto colonial deu título a um dos livros de Albert Camus, judeu francês-argelino (um pied noir, na terminologia da época). A história contada por ele com um tratamento existencial/absurdista em O Estrangeiro, ganhou em 2013, na Argéiia, uma nova versão. Escrita pelo árabe-argelino Kamel Daoud sob o ponto de vista de um irmão do “árabe” assassinado por Meursault, protagonista francês da obra de Camus. Daoud, com essa escolha, começa por dar ao “árabe” um nome e uma família. O romance, intitulado, em francês, Meursault, contre-ênquete foi publicado em 2014 na França. Em inglês, The Meursault Investigation apareceu em 2015, quando estive presente no lançamento, com a presença do autor, cuja fala inflamada provocou polêmica na mansão fronteira ao Central Park que abriga a livraria francesa Albertine (972 5th Ave.).

 Ana Luísa Amaral trata, sem panfleto, do colonialismo. Em “Lugares comuns” (p.50-53), do qual seleciono a primeira e a última estrofe, por exemplo. Esclareço que, segundo ela, “um café manhoso”, do português de Portugal, corresponde a um “botequim pé sujo” no português do Brasil.

In London I went

into a greasy spoon (it’s not only us

who have greasy spoons, the English too

and they once had other things now

it’s only Scotland and a little bit of Ireland and those

little tiny island, but anyway)

………………………………………

and I thought that doesn’t matter if it’s London or us,

that everywhere

you find the same.
Entrei em Londres

num café manhoso (não é só entre nós

que há cafés manhosos, os ingleses também

e eles também tiveram mais coisas, agora

é só a Escócia e um pouco da Irlanda e aquelas

ilhotazitas, mas adiante)

..........................................................

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,

que em toda parte

as mesmas coisas são.

Na véspera (10 de abril), Ana Luísa esteve num ambiente que lhe é muito familiar, sendo professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Universidade do Porto, em Portugal: a Universidade de Columbia. Lá, onde não estive, me disse ela estar repleto o recinto reservado para o evento Talking Translation with Margaret Jull Costa and Ana Luísa Amaral, pelo Programa de Tradução e Escrita Criativa da Escola de Artes da Universidade.

Naquela instituição acadêmica o “place / lugar” da poesia ibérica pertence a García Lorca, que em Columbia viveu, como estudante, entre 1929 e 1930. Embora Un poeta en Nueva Iorque, livro onde ele elabora poeticamente sua estada na cidade, só tenha sido publicado depois de sua morte, os críticos literários são unânimes em afirmar que New York mudou radicalmente a obra do poeta espanhol.

A passagem rápida de Ana Luísa Amaral por New York, uma entre várias, anos afora, não mudará sua obra, porque nada nela necessita de mudança. E esse texto meu pretende ser, além de um agradecimento pelo prazer estético que ela ofereceu ao seu publico, o que a última estrofe do seu poema “Ondas gravitacionais: registos” (p. 122-123) define:

Nothing was heard, nothing was seen,

Not clearly at least but it’s what we call

In our language, one created and learned

on o blue planet: a trace.”
Não se ouviu nada, nada foi visto

Claramente visto, mas é o que se chama

Nesta língua de nós, criada e aprendida

Em formato de azul: registo.