Vertigem

Faz quase um ano que não entro em contato com meus leitores através deste Blog. Minha volta `a New York sob pressão de problemas de saúde na família, felizmente bem resolvidos, tomaram - e ainda tomam - muito do meu tempo. Hesitei se o reabriria na linha usual: falar de New York quando aqui estou, como é o caso agora, ou do Rio, que sempre me faz falta se fora dele ando. Então me lembrei de um conto, ainda inédito em impressão: foi publicado, apenas, no blog do meu amigo Oswaldo Martins, antes ainda de ele ter-se transformado em editor dos meu livro “Diários da Patinete. Sem um pé em Nova Iorque”, em 2015.

A vertigem que lhe dá título, por um lado serve como metáfora da sensação que tenho ao receber as notícias da barbárie instalada no Brasil desde que o atual governo assumiu o poder. Sua leitura me deixa a sensação de debruçar-me no topo de um abismo de maldade sem fim, afetando, mais do que nunca, a gente pobre, as mulheres de todas as classes e, agora, até as crianças. Essa triste realidade, combinada`a atmosfera global de uma pandemia, compõe um cenário cada vez mais sombrio.

Lembrei-ms deste meu conto ao ler, inda agora, uma notícia que compara a morte recente de um menino, ocorrida no seio da sua família, com a de uma da menina, no mesmo ambiente, faz alguns anos. Morte que aparece no conto que aqui reproduzo.

Tinha, ainda, em mente, o feminicídio. Tentando mostrar a recorrência desse crime, agora estendido `as crianças. E eis que veio a morte de meninos. Faz poucos anos, a do filho da empregada doméstica da família do prefeito de uma cidade pernambucana, no Recife. Agora, prova-se a morte de outro, assasinado por um legislador eleito pelo povo do Rio de Janeiro, seu próprio padrasto, crime assistido pela própria mãe do menino morto.

Se há algo de positivo que essa pandemia poderia provocar, seria uma discussão nacional e / ou planetária sobre como retomar o humanismo. Fóruns de discussão sobre o cuidado e a proteção das nossas crianças, nosso futuro, serão muito bem-vindos. Mais não digo. Deixo que o resto seja dito com esta curta narrativa, onde narro a história de três gerações de mulheres cariocas. Com uma pontinha de humor, porque só ele pode dividir e tragédia em degraus de alívio reflexivo.

Segue o conto:

VERTIGEM

            Estávamos as três com o olho grudado na televisão, quando a vovó falou:

            - Meu Deus, como a Aída Curi está pequeninha...

            A narrativa do crime era muito absorvente e ninguém prestou atenção.

            - Vai ver que quando caiu lá embaixo, além de virar santa ficou menina outra vez.

            - De quem você está falando, vovó?

            - Da menina aí da notícia... É a Aída Curi!

            Mamãe resolveu responder:

            - Não mamãe, o nome dela é outro.

            - Ela foi jogada do alto de um edifício, não foi?

            - Foi, mas de outro edifício e em outra cidade.

            - Copacabana naquela época era fina. A gente andava de tailleur completo e salto alto, não era essa falta de gosto que agora se vê pelas ruas. Em meio à elegância, aquele crime. Você se lembra, Arlete?

            - Sim, mamãe, lembro-me muito bem.

            - Da Aída Curi? Mas graças a Deus você não a conhecia. Eu não deixava você sair sozinha, tudo era mais decente.

            - Lembro-me muito bem, porque você e papai fizeram da minha vida um inferno depois desse crime.

            - Pra seu bem, minha filha, pra seu bem. Menina de família não acaba como a Aída Curi.

            - Isso era no seu tempo, mamãe.

            - Ela era uma moça muito bonita, de uma beleza pura.  Por isso mesmo se perdeu. E o Ronaldo Guilherme, que a atraiu lá pra cima, e o Cássio Murilo, que a matou! Que pedaços de homem! Olha aí o Ronaldo agora! Pois se estão contando o crime. Olhem bem: não é bonito?  Verdade que um pouco caído, sem os óculos rayban, falando errado... Ainda assim, um pão!

            - Esse aí tem nome de rei e é o pai da menina que morreu...

            - Não foi o pai da Aída Curi que a jogou pela janela. Um pai não faz uma coisa dessas. Isso é absurdo. Se é pai, tem que proteger a filha. Quem matou a Aída Curi foi o namorado dela, ou o homem que ela pensava que era namorado dela.

            - Isso era no seu tempo, mamãe! E nem o Ronaldo, nem o Cássio Murilo eram namorados da Aída Curi.

            - Tinha um outro envolvido também. Um outro cafajeste, como a gente chamava os meninos desajustados naquele tempo. Imagina, currada por dois homens, que horror. Isso é que dá aceitar convites sem pensar, se deixar seduzir pela beleza, pelas belas palavras... Olha só a carinha da menina. É a Aída Curi quando era menina, tenho certeza.

            - Hora de ir pra cama! Você está confundindo tudo, mamãe!

            - Se eu for pra cama agora, vou sonhar com o Ronaldo Guilherme.

            - Pois deveria mesmo ter um pesadelo com o Ronaldo. E com o Cássio Murilo também. Foram eles os responsáveis por você e papai terem me obrigado a esquecer minha turma da praia, vigiando-me como uma retardada. Terminei casada com o estafermo do Gregório.

            - Puxa, mãe, como você pode falar assim do papai, além do mais, já morto?

            - Você não se casou com ele, Patrícia, nem chegou a conviver com ele como seus irmãos, muito mais velhos que você, tiveram que fazer a contragosto.

            - Eu também acho que você não pode reclamar, Arlete. O Gregório era um bom partido. Graças a ele, você vive nesse apartamento de frente pro mar. Em Copacabana.

            - Decadente, mamãe. O apartamento e o bairro.

            - O problema é que Gregório morreu muito cedo. Trabalhava muito. Muita preocupação financeira...

            - Falcatruas, mamãe, sempre metido em falcatruas. Só me deixou dívidas.

            Vovó esqueceu-se da televisão e perdeu os olhos em algum ponto distante do oceano Atlântico, muito além da janela do apartamento.

            - Eu nunca confessei a ninguém, mas eu me apaixonei pelo Ronaldo Guilherme. O Cássio Murilo era um fedelho, não oferecia atrativo para a mulher madura que eu era na época. Já o Ronaldo lembrava o Marlon Brando. Eu amei o Ronaldo Guilherme...

            - Como, mamãe?

            - Era uma paixão medonha. Eu o imaginava me dizendo obscenidades no ouvido, me rasgando a roupa... Assim descreveram o crime: rasgaram a roupa da moça e ela lutou. Dizem que se jogou para se salvar deles, tendo morrido virgem. Boba. Eu mais queria era fazer sexo com o Ronaldo Guilherme, até com o Cássio Murilo...

            - Mamãe, você está ficando inconveniente. Hora de ir pra cama!

            - E eu vou perder o Ronaldo falando na televisão? Quem é a namorada dele?

            - Não é namorada. É a mulher dele.

            - Ele casou? Que pena! Não há mais esperança de que eu me case com o Ronaldo Guilherme? Na verdade não parece o Ronaldo, sempre bem vestido, bem articulado...

            - Mamãe, eu já disse à senhora que esse é não é o Ronaldo.

            - E essa mulher, quem é?

            - É a mulher do rapaz. A polícia diz que ela estrangulou a enteada e o pai da menina a jogou pela janela.

            - Meu Deus! Ronaldo não faria uma coisa dessas.

            - Como não?

            - Ora, Arlete! Tem muita diferença entre jogar pela janela uma desconhecida, que além disso concordou em subir com ele para o apartamento, e assassinar a própria filha.

            - E qual é a diferença?

            - A dos tempos, minha filha. Antes, a gente protegia as filhas, vigiava a companhia delas, punha atenção à hora em que chegavam em casa, agora é esse caos, essa falta de hábitos..

            - Pera aí, vovó, não vira sua metralhadora giratória contra mim, não!, tive que me defender, já que conhecia onde esse comentário terminava.

            - Mas se a menina estava na casa da família dela, mamãe!

             - Que família? Se era enteada da tal que dizem que a esganou, onde estava a mãe dela? Assim que esse pão aí, além de assassino, é bígamo?

            - Chega, mamãe. Dessa vez você vai pra cama sem apelação.

            Apesar da má vontade, vovó concordou. Já cansada de tanto alarde, desliguei a televisão. Depois de acomodar a vovó, mamãe voltou à sala. Acendeu um cigarro (por que não pára de fumar?) e sentou-se a meu lado. As duas contemplávamos o navio iluminado que cortava o oceano.

            - Mãe, a quem se referia a vovó? Quem era Aída Curi?

            - A vítima do crime mais comentado dos anos 50. Moça pobre, estudante de datilografia. Acho que não era de Copacabana. Se era, não freqüentava o círculo dos seus assassinos.

            - Quem eram eles?

            - Meninos de famílias importantes. Passavam seu tempo entre a praia e as motocicletas da época de James Dean, do Marlon Brando jovem..

            - Marlon Brando sei quem era, mas James Dean...

            - Um ídolo do cinema americano. Os rapazes o imitavam, com seu casaco de couro, seus óculos rayban...

            - Você conhecia essa turma, mamãe?

            - Não exatamente. Eu era quase uma menina. Davam medo, mas também fascinavam. Os homens, especialmente. No final das contas, se comportavam todos igualzinho a eles.

            A fumaça do cigarro escondia os olhos úmidos de mamãe.

            - O que foi, mãe? Más lembranças?

            - Talvez, filha.

            - O crime foi aqui em Copacabana?

            - Sim, aqui pertinho, na Atlântica mesmo. Acho que o prédio ainda existe. Jogaram a moça do 12º. andar.

            - Isso está parecendo o caso daquela menina lá da Fonte da Saudade, uma tal de Mônica. Tinha uns quinze anos. Também foi jogada de um andar alto, por dois rapazes que a conheceram numa discoteca. Eu era garota ainda, mas lembro do escândalo.

            - É um crime da sua geração. Não ficou registrado na minha memória.

            - Acode, gente! O Ronaldo Guilherme e o Cássio Murilo querem me estuprar!

            Mamãe de um salto alcançou o quarto e conseguiu segurar a roupa da vovó. Seu corpo delgado obedeceu e recuou.  Eu a abracei pela cintura, protegendo-a contra a janela, o que me fez projetar meu próprio corpo quase metade para fora, mas as mãos de mamãe se fecharam nas minhas costas, puxando à mim e à vovó para trás. Ficamos as três abraçadas, trêmulas de medo, a contemplar as ondas de pedra, brancas e negras, no calçadão lá embaixo, enquanto na Avenida Atlântica, como nos cartões postais, os carros deixavam, na sua passagem, um rastro de luz.

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