Lidia V. Santos

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Machado Fez 181 Anos

Neste “chalé”, o escritor Machado de Assis (1839-1908) viveu os últimos 24 anos de sua vida, na companhia de sua querida Carolina. Depois da morte da mulher pouco saía da casa, o que lhe valeu o apelido de “bruxo do Cosme Velho”, bairro onde o edifício se situava até `a década de 1970. Nesses dez anos que durou o “milagre brasileiro” da ditadura militar, impulsionado, nas grandes cidades, pela especulação imobiliária, o chalé foi demolido. Em seu lugar se ergue um edifício residencial, sem nada que recorde o antigo prédio e a história que ele abrigava. Apenas uma placa lembra aos passantes que, naquele endereço, viveu Machado de Assis. Uma pizzaria foi o estabelecimento comercial mais popular das lojas do térreo, a nível da rua, em seguida `a entrega da construção aos moradores.


Nos anos 90, por mais de dez anos morando num cantinho de Laranjeiras entre o Parque Guinle e o Largo do Machado (cujo nome nada em a ver com Machado de Assis), escrevi um conto com base em quase tudo que relato na legenda da foto acima. Também partindo da minha admiração pela obra do “bruxo” e da minha experiência de moradora do bairro. Tive a sorte de concretizar tal apreço a Machado na celebração do centenário da sua morte, ocorrido em 2008, na cidade de New York. Lá vivia e trabalhava no Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de New York (Graduate Center / CUNY). Fiz parte da Comissão Organizadora do festival “Machado 21: A Centennial Celebration”, que ocupou Manhattan, com Machado de Assis, por uma semana. A cada tarde ou noite, um evento era realizado em diversas linguagens e diferentes instituições acadêmicas e culturais. Sua repercussão provocou artigos em jornais, como o New York Times e revistas, como a Newsweek. Um resumo de tudo que nele aconteceu, com depoimentos gravados dos seus organizadores e convidados, pode ser visto na seção “Sobre a Autora”, deste site, sob o título “Machado 21”; com legendas em inglês e português.

O professor Michael Wood, da Universidade de Princeton, um dos convidados, disse, na sua conferência, que o mais surpreendente quanto `a recepção da obra de Machado de Assis nos Estados Unidos, é a sua capacidade de adaptar-se `as mudanças de ventos teóricos de cada geração intelectual. “A obra de Gabriel García Márquez, por exemplo, permanece até hoje com a mesma análise”, disse o professor Wood. “Machado de Assis, ao contrário, sempre reaparece analisado com o aparato teórico do novo tempo em que é estudado.”

Publicar esse meu conto sobre Machado aqui e agora também faz parte de um novo tempo da obra de Machado de Assis nos Estados Unidos. Duas novas traduções do seu romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” ao inglês, segundo o caderno de livros do New York Times, foram publicadas neste mês do seu aniversário. A de Flora Thomson De-Veaux, lançada pela Penguin no dia 2 de junho passado, teve sua primeira edição esgotada no mesmo dia, segundo a editora. Essas duas traduções trazem Machado, mais uma vez, aos órgãos de imprensa, novamente suscitando avaliações de sua obra. Como se pode ler no artigo citado acima, datado de 16 de junho de 2020 e cujo link é:

https://www.nytimes.com/2020/06/16/books/review-posthumous-memoirs-bras-cubas-machado-de-assis.html?smid=em-share

Em português, o artigo, bastante completo, “Como Machado de Assis está sendo redescoberto pelo mundo”, com autoria de Edison Veiga, publicado pela TAG/ UOL em 17 de junho de 2020, reporta, além das traduções americanas, uma outra, recente, publicada na Eslovênia.

Finalmente, também celebro, com essa segunda publicação da minha curta narrativa, o aniversário de Machado, ocorrido no último dia 21 de junho.

Tenho muito carinho por este conto. Mais um incluído no meu livro “Os Ossos da Esperança”, publicado em 1994.

Aproveito para contar que o silêncio desse blog, coincidindo com a quarentena contra o covid-19, deveu-se `a pane do meu computador, ocorrido justamente no dia da início dela. Também por isso (escrevo num computador alheio), decidi voltar ao convívio dos meus leitores com um trabalho antigo - mais fácil; ocuparia menos tempo de edição. Ao lê-lo depois de tantos anos, lembrei que ele vivenciou uma história muito presente, que conto no próximo parágrafo. Também lembrei com carinho do amigo, personagem dela, que já se foi faz alguns anos; como meu amigo permaneceu até deixar este mundo.

Inscrevi “A Volta do Bruxo” num concurso promovido pela então muito atuante Associação de Moradores de Laranjeiras (na verdade, o conto foi motivado por ele). Ganhou um segundo lugar. Na opinião do amigo acima citado, um dos jurados anônimos, como eu também, que concorria sob pseudônimo, o conto era excelente. No entanto, disse-me ele, como o patrono do concurso era Lima Barreto, eu perdi o o primeiro posto. Como veem, a derrubada de estátuas e o “lugar de fala” faz tempo vem sendo muito bem defendidos por quem tem a oportunidade de nele estar. Errei no patrono -pensei que o tema era o bairro -, uma pena!

Segue o conto:


A VOLTA DO BRUXO

O pizzaiolo era o primeiro a sair. Os donos do negócio poupavam-lhe o espetáculo da limpeza e as agruras com a segurança na hora de fechar: a ele deviam a fama da casa. Saía cansado. Horas a fio de pé, desgastadas no caminhar diário com que fechava o expediente. `A noite era menor o movimento dos carros, e o declive da rua favorecia a chegada. Ganhara a intimidade das árvores e das corujas, as fachadas dos edifícios já se tinham tornado familiares, e certos porteiros eram amigos de fato. Por vezes parava para conversar. Ajudava o companheiro a não pregar o olho, fazendo também sua pausa de descanso. Até o Largo do Machado era uma longa jornada. Vez em quando, algum outro trabalhador repartia o trajeto: garçons, faxineiros, operadores em turnos, porque outras profissões menos sérias não se achegavam ao seu jeito conspícuo.

Daí a surpresa quando lhe dirigiu a palavra aquele homem entrado em anos, bengala segura na mão direita a denunciar hábitos de outros tempos. Tinha o porte de quem experimentara o prestígio e as boas maneiras.

- Por favor, é aqui o início da rua das Laranjeiras?
- Depende. Se o senhor vem da rua Cosme Velho, é aqui mesmo. Se vem do Largo do Machado, este é o seu final.

Há boa iluminação naquele exato ponto da curva, e ele pôde ver melhor o rosto do homem. Usava uns óculos de modelo antigo, e alguma coisa na sua roupa pareceu-lhe familiar.

- Faz muito tempo não ando por aqui. Morei neste bairro lá se vão alguns anos, quase não o reconheço.

- Está de passeio?

- Visitando uns amigos. Mas o senhor sabe, gente velha dorme pouco. Decidi caminhar em vez de ficar me revirando na cama dos outros.

- Não lhe avisaram que pode ser perigoso? A cidade mudou de hábitos e as ruas estão cheias de ladrões.

- E o senhor? Não tem medo?

- Faz tempo que trabalho por aqui. Os vagabundos da noite me conhecem. Sabem que nada lucrarão comigo.

- O que o senhor faz?

- Sou pizzaiolo. Trabalho num pizzaria da rua Cosme Velho.

- Passei por ela. Tem um prédio alto por cima.

- Ali mesmo.

- O senhor gosta do que faz?

- Gosto muito. Antes era padeiro. O pão afamado atraiu o dono da pizzaria da esquina, que me dobrou a oferta da padaria. Logo aprendi e logo inventei novidades na massa da pizza. Hoje posso escolher onde trabalhar.

- Escolheu então a casa do Cosme Velho?

- A oferta era boa e o gerente simpático. Mas o que me fez decidir foi o local. Talvez pelo clima. É um bairro mais arborizado. E mais tranquilo também. É bom sentir o cheiro da noite ao sair do trabalho, coisa que se perdeu em outras partes da cidade. Mas devo-lhe confessar uma coisa.

- Sim?

- Desde a primeira vez, senti algo especial naquela casa. Foi o que me fez ficar. Hoje me sinto feliz em saber que vem gente de longe pra comer da minha massa. E o senhor? Aposentado, com certeza. O que fazia?

- Era funcionário público.

- Graduado, logo se vê.

- Isso não importa. Fale-me do senhor, quero saber do presente.

As noites passaram a ter outro sentido a partir daquele encontro. O homem da bengala quase sempre lhe cruzava o caminho, e a conversa era fácil e agradável. Nunca se sentira tão a vontade com um homem tão culto, porque sua cultura saltava `a vista. Pelo jeito de trajar, embora bem antiquado.Pela forma de empregar as palavras. Conseguia, por inexplicável arte, destravar-lhe a língua, fazendo-o contar casos de que nem sabia lembrar-se tão bem. E aos quais nem pensava que alguém pudesse dar importância. Contava sobre os fregueses da rua São Clemente, da rápida passagem pela rua da Carioca, um horror, só gente apressada, prazer muito pouco, pedira logo as contas. Pois já que o dinheiro é sempre pouco, pelo menos que se tenha prazer. O homem da bengala ouvia as histórias com muita atenção. Perguntava por determinado prédio, por sorte era observador e sempre tinha respostas. Surpreendia-se com as mudanças: “Quer dizer que a Casa Colombo tem poucos fregueses? A Cavé, ainda lá?” Algumas vezes inventava, porque ninguém é perfeito e a causa era louvável. O novo amigo lhe proporcionava tanta alegria, que não custava mentir um pouco. Como confessar seu desconhecimento de velhas construções, ou a derrubada de grande parte delas?

Uma noite, o homem da bengala disse que se aproximava a hora de partir. Que seus amigos já deviam estar enfadados da sua velhice, que precisava voltar pra casa.

- O senhor aceitaria um convite? Quero retribuir-lhe a delicada atenção que me dedicou nesses poucos meses. Que tal provar da minha pizza? Teria o maior prazer em recebê-lo na nossa casa. O patrão compreenderá.

Ele esboçara um sorriso antes de responder.:

- O senhor é muito gentil. Aceito com prazer.

Selecionou o melhor chianti da casa. A massa nunca fora sovada com tal ritmo, um convidado de verdadeira honra. Ele havia pedido uma mesa discreta, posicionou-a ao fundo, semi-oculta por um biombo. Parecia divertir-se em observar a clientela no ato de comer.

- É gordurosa essa comida. Acha que eles sentem o sabor da massa?

Não podia crer. Como adivinhara a mais secreta de suas frustrações? A insensibilidade daquela gente que misturava óleos e molhos aos selecionados queijos, exigindo misturá-los a carnes e linguiças, cogumelos e tomate? Nunca conseguira entender como conseguiam comer aquela miscelânea. Por isso era seu amigo, apreciava a fineza da massa bem sovada.

- Não quero essas coberturas. Faça leve a massa, tostada como um biscoito. Irá bem com o vinho.

Os outros comensais não lhe prestavam atenção. Por sorte. Não viam o sarcasmo que lhes dispensava enquanto sorvia vagarosamente o vinho e degustava com prazer a massa.

- Uma beleza! - dissera ao provar.

Ao sair o último freguês, o pizzaiolo sentou-se `a mesa e compartilhou o envelhecido vinho com o convidado. Pagaria descontando do salário, garantira ao gerente. O homem da bengala perguntou-lhe se havia terminado o serviço, disse que sim.

- Então, é a minha vez de retribuir.

- De jeito nenhum!

- Faço questão. Além do mais, não me custará nada. Pode aceitar.

Levantou-se da mesa e voltou-se para trás, pedindo com um gesto que o acompanhasse.

- O senhor se engana. A saída é pela frente do salão.

- Existe uma outra. Siga-me, por favor.

O pizzaiolo viu abrir-se diante deles uma porta de cuja existência nunca suspeitara. Uma antiga sala de refeições os acolhia agora. Na mesa permaneciam os dois cálices de chianti, safra de cem anos atrás. Beberam nova garrafa de vinho, enquanto falavam de amenidades.

- Se minha esposa não estivesse a dormir, eu lhe mostraria o resto da casa. Vamos `a nossa caminhada? Já são horas.

Pela porta dos fundos pôde vislumbrar o quintal: um cajueiro ficava mais próximo, mas chegou a ver também os altos galhos de um pé de fruta-pão. Do lado de fora, a rua recendia a flor de laranjeira e o rumor de água corrente denunciava a proximidade do rio. Caminharam até o banco azulejado da primeira parada da rua das Laranjeiras.

- O bonde já não passa. Terá que aguardar a chegada do dia.

O homem falava da gente do seu tempo, igual, igualíssimo, conforme dissera um poeta de agora: a maioria preferindo o repasto sem arte, na avidez dos negócios ou no desperdício das palavras fúteis.

- As gentes, meu amigo, não têm remédio.

O pizzaiolo não reconhecia a rua das Laranjeiras. Casas com jardins fronteiriços, muitas vilas, construções geminadas. Cheiros de jasmins-do-cabo e damas-da-noite quase distraíam sua atenção do denso piar das aves noturnas. Os lampiões não ofuscavam o céu de abril, e, provavelmente por vez primeira, ele visse estrelas na noite do bairro. Era um homem no seu limite e intuía a fugacidade dessa experiência.

- O senhor é um mestre?

- O senhor também o é. Ofereceu-me uma real iguaria.

- Mas era apenas trigo e água e sal!

- E quantos o senhor conhece capazes de fazer a delícia das gentes com tão pouco? Também pouco dão a isso valor. Daí a sua modéstia.

- Suas palavras tornam importante o meu trabalho.

- Nada somos neste país de bocas vorazes. Seu pão e minhas palavras nele não têm serventia. Cada vez mais fracos, nossos homens esgarçam as frases, a voz confundida num atropelo de indefinições. Dê-me sua mão!

O homem da bengala apertou-lhe a mão com firmeza e desapareceu na luz da manhã. O pizzaiolo pôde então reconhecer o ônibus que se aproximava. Era o seu. O Largo do Machado tinha de novo suas figueiras centenárias e o abricó-de-macaco estava cheio de frutos porque havia terminado o verão. Amanhã tentaria pôr no cardápio a massa pura e tostada. Quem sabe ele estaria de volta?


Abricó-de-macaco florido no Largo do Machado. Bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro. Verão de 2020.